O nosso tempo

Dá que pensar…

A quem pertence a vida? Pertence a cada um de nós, que lhe vestimos transitoriamente a pele? Apenas algum tempo, repito?

Ou a quem nos colocou aqui, conforme as concepções de cada um?

Somos proprietários absolutos ou meros possuidores temporários de algo que não nos pertence?

Este debate de fundo, questão velhíssima como o ser humano, foi reaceso há dias, nos Estados Unidos.

Brittany Maynard era jovem, tinha apenas vinte e nove anos. E estava em fase terminal, com um cancro no cérebro. Optou pela chamada morte assistida, antes que o sofrimento fosse intolerável. Mas decidiu mais: fazer da sua escolha última um acto político extremo, defendendo a eutanásia como direito universal.

Respeito naturalmente o sofrimento moral de Brittany. É a opção, todavia, que está em debate.

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Os media deram à campanha de Brittany a publicidade devida, como a própria desejava e era de esperar. Até porque este é um assunto quente nos Estados Unidos ,onde há Estados que legalizaram a chamada “morte assistida” e outros não.

Cada um de nós acredita no que acredita. E no respeito da diversidade de opiniões, algo parece comum a todos nós: aceitamos que não há sistema jurídico isento de valores, não há ordem jurídica que não seja veículo de uma certa concepção do mundo e da vida.

Com total respeito pelo desespero implícito na visão de Brittany, esta é claramente minoritária.

Mas a questão transcende naturalmente a mera contagem de votos, expressão que estes são sempre de estados de espírito transitórios da opinião pública.

A questão é ética e filosófica. É naturalmente religiosa. E é política.

 

A questão ética e religiosa

Tenho um amigo de infância que, quando adolescente, descobriu um dia que queria ser progressista. E desatou a questionar tudo, principalmente para ser do contra – como só a psicologia do adolescente consegue sê-lo, com tanta obstinação! Mais tarde, se se é saudável e se se amadure bem… é que vêm as dúvidas…

O nosso professor de Religião e Moral, pessoa não muito arguta e que dava facilmente o flanco em debates mais delicados, foi a principal vítima do despertar filosófico e mesmo ateu do meu amigo.

Mas ele era progressista, como próprio da idade, por clubismo, mais do que por convicção.

Pois esse meu amigo apareceu-me um dia a defender, com denodo, a eutanásia.

Porque queria ter o comando sobre a sua vida e da forma de lhe pôr termo, afirmava já muito enfático, a antecipar uma rija troca de ideias.

O argumento não me impressionou nada.

E lembro-me até de lhe ter perguntado se se recordava de quando é que tinha decidido nascer… tão seguro estava do direito à (sua) vida…

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Naturalmente que esta minha reacção não encerra o debate, podendo esgrimir-se argumentos e contra-argumentos que indefinidamente o prolongam.

E todavia, esta noção básica de que não nos pertencemos, ainda hoje tem para mim a forte coloração das verdades simples e óbvias.

Não nos pertencemos.

Pertencemos a Deus. E se não se acreditar em Deus, chame-se-lhe cosmos, ou ente superior, luz, energia, força, o que se quiser.

Mas tenhamos pelo menos a humildade de reconhecer que de criaturas não nos podemos transformar subitamente em criadores.

E quando fingimos ser criadores de uma nova ordem (da natureza, por exemplo)… fazemos asneira. Vejam-se as alterações climáticas!

Acontece também que fomos dotados de um fortíssimo instinto de sobrevivência… e não do seu oposto!

 

A questão política

Se o debate religioso e filosófico nunca terá fim, ambas as dimensões radicando em convicções pessoais sobre o mundo e a vida, já a questão política assume contornos distintos.

Porque há aqui uma questão política que relaciona o tema com os objectivos fundamentais da sociedade no seu conjunto.

Chamo à colação o que ouvi não há muito tempo em rádio católica, por sinal americana: se os poderes públicos liberalizam a prática, tornando banal o direito à designada “morte assistida”, a pretexto de que tal opção releva tão só das convicções pessoais de cada um, ter-se-á não muito distante, com dimensões de epidemia, uma crise de confiança na própria vida, com abandono antecipado das energias que cada um possui, para ultrapassar desafios e dificuldades.

Prevalecerá no futuro, nas sociedades ditas pós-modernas, a consideração (o culto!) do individualismo o mais extremo, rasgando-se assim um compromisso social alargado sobre estas verdades essenciais?

Desejo sinceramente que não.

 

Uma nação cristã?

A propósito de um debate constitucional

O debate tem lugar na Zâmbia, a propósito do novo texto constitucional.

Pois o projecto de texto em discussão consagra, no seu preâmbulo, que a Zâmbia é “uma nação cristã”.

No debate em curso, ergue-se uma voz quase isolada… a de um dignitário católico que desaprova tal inclusão, com dois tipos de argumentos:

Primeiro, porque há outros grupos religiosos no País, incluindo os muçulmanos que não se reconhecem em tal fórmula;

Segundo, que não sendo a sociedade zambiana um modelo de virtudes, vale mais aos cristãos praticar a sua Fé do que fazer a sua propaganda na lei.

Pelo contraste total, não deixei de me recordar a prática do chamado Estado Islâmico ou de grupos africanos que lhe são muito afins…

Onde está a verdade?

Na imposição de uma forçada obediência dita religiosa, ou neste abrir de portas a todos?

 Carlos Frota 

Universidade de São José

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