Caçadores de guerrilheiros
Pembaru (que em Bahasa significa caçador) era a alcunha do batalhão liderado pelo oficial bugi. Tratava-se de uma força composta por elementos naturais de Java, Samatra, Celebes e Bali. Um deles, barbudo e com uma boina a lembrar um Fidel dos tempos anteriores ao assalto ao palácio de Moncada, vinha da distante província de Irian Jaya. Os colegas apelidavam-no de “Bin Laden”, embora fosse cristão, tal como o furriel javanês Ignatius, que lamentava ter de passar o Natal na selva, longe da família.
«– Somos quinze cristãos ao todo e fazemos orações entre nós, pois por aqui não há igrejas».
A seu lado, Ray e Harold cantavam, afinados, «canções de Amboíno que apelam à paz». Apesar da devoção, não tinham dúvidas:
«– Somos caçadores de GAM. Se os virmos, disparamos a matar».
Informaram-me de que os rebeldes se abasteciam de armamento na Tailândia e envergavam muitas vezes uniformes do exército com as divisas arrancadas. Aliás, de um lado e do outro, utilizava-se material recolhido junto do inimigo. Ignatius mostrou-me um rádio transmissor Kenwood, dizendo com orgulho:
«– Pertencia aos guerrilheiros GAM que abatemos esta manhã».
Já ao cair da noite, grupos de crianças brincavam com pneus e aros de ferro; os cães ladravam insistentemente à passagem de dois camiões que faziam questão de circular apesar dos riscos de emboscada. Ao fundo da rua, a única asfaltada da aldeia, com uma série de minúsculos restaurantes alinhados lado a lado, avistavam-se silhuetas. Dois, três… sete. Ao todo eram sete os militares que patrulhariam Lamno essa noite.
As Rasman veio ter comigo e, indicando um barracão com uma cruz vermelha desenhada no portão principal, declarou:
«– Estão ali três cadáveres. São os GAM que a patrulha abateu esta tarde. Quer ir vê-los?»
O professor referia-se a eles com desdém, pois eram «terroristas, inimigos da República Indonésia», arrematando com uma tirada seca:
«– Tão jovens. Mas que idiotas!»
Os corpos estavam alinhados no chão do ambulatório, cobertos com panos brancos, à espera de que familiares os viessem reconhecer.
«– Já lhes telefonámos, mas só amanhã de manhã os virão buscar», informou a médica de serviço, pedindo-me que não fotografasse, pois era proibido. «– São ordens superiores, com certeza compreenderá».
Na manhã seguinte fui apresentado ao outro aldeão que falava Inglês. Chamava-se T. R. Adam e logo me indicou o nome das pessoas que me poderiam ajudar nas minhas pesquisas. Em Lamno, Teku Abas e o «meu familiar Ibrahim» eram os homens a contactar. Já na aldeia vizinha de Kuala Daya, «se conseguir autorização para lá chegar», Teku Suleiman e Teku Achim, «filho de Anak Raja Sarung», seriam as melhores fontes de informação. Segundo dizia, Teku Achim saberia, inclusivamente, pormenores da história do naufrágio e tinha em sua posse uma tabela genealógica daqueles que descendiam de portugueses.
Durante os dois dias que consegui permanecer em Lamno tentei, por diversas ocasiões, embora sem êxito, visitar Kuala Daya, contrariando os militares que gentilmente me “convidavam” a seguir viagem para Sul.
Argumentava o capitão do regimento Tarantula destacado na área:
«– Kuala Daya é zona GAM. Teremos de telefonar ao nosso superior, informando-o da sua presença e esperar que lhe conceda autorização para aqui permanecer. Só depois poderemos saber se o deixam visitar a aldeia ou não».
Pelos vistos, não deixavam. Teria de requisitar um salvo-conduto em Melabuoh, 200 quilómetros a Sul, e regressar.
«– Não podemos correr riscos. Se lhe acontecer algo, se for morto, seremos os responsáveis», escusava-se o sempre educado comandante.
Insisti, socorrendo-me de alguma retórica persuasiva, e o jovem oficial, a contragosto, acabaria por ceder.
«– Por quanto tempo?», perguntou. «– Terá de tratar do transporte e ir por sua conta e risco».
Teria de lhes deixar o passaporte como garantia e, ao fim de duas horas, reportar a minha chegada.
Ultrapassado o primeiro obstáculo, dirigi-me para casa de Ibrahim, “irmão” de T. R. Adam, convencido de que me arranjaria transporte. Negociante de sucesso, Ibrahim construíra casa, a mais abastada da região, junto à mesquita. Para meu espanto, não só não me convidou a entrar, como negou a possibilidade de haver qualquer veículo que me pudesse levar a Kuala Daya, embora o seu jipe fosse bem visível na garagem.
Se não fora muito complicado conseguir autorização de estada suplementar na aldeia, e até para uma visita-relâmpago a Kuala Daya, estava a ser dificílimo encontrar alguém disposto a levar-me à presença do senhor Teku Achim e companhia, provavelmente por receio de eventuais represálias por parte dos militares.
Só então entendi a súbita mudança de planos do homem gordo que me levara a visitar a sua família, prometendo-me uma deslocação, «mais tarde», a Kuala Daya. Uma breve troca de palavras com a mulher foi suficiente para que uma doença súbita o acometesse. Para tornar o quadro mais convincente, o homem simulava até descontrolada tremedeira… Achei tudo aquilo muito estranho.
Regressei ao botequim na rua principal, o meu habitual posto de observação e, quando estava pronto a desistir, apresentou-se à minha frente um homem franzino, encavalitado numa motocicleta vermelha.
«– Vá. Ele leva-o a Daya. Por dez mil rupias», alguém disse.
Nem vi quem era. Sem hesitar, saltei para o veículo.
Ao contrário dos motociclistas com quem tinha contactado anteriormente e que me diziam que poderia ser morto pelos GAM se viajasse até Daya, este parecia estar bastante bem relacionado. Cumprimentou todas pessoas com quem nos cruzámos. E, se imaginara ter de atravessar seis quilómetros de selva à mercê de uma emboscada, enganei-me redondamente, pois eis-nos na estrada principal a maior parte do tempo, tendo sempre ao nosso lado arrozais, casas humildes e gente com o ar mais acolhedor deste mundo.
Joaquim Magalhães de Castro