O nosso tempo

Quaresma, o fim do caminho

Por entre os afazeres de um quotidiano que a cada um de nós pouco tempo concede, para maior digressão pelas suas “avenidas interiores”, está a decorrer a Quaresma que vem renovar, em cada ano, a tragédia da cruz e a grandiosidade do que se lhe seguiu.

Os paramentos roxos e a cobertura das imagens sugere um tempo de despojamento. E assim será até à grande polifonia da Ressurreição.

Pena é que esta não seja celebrada com alegria pelo menos equivalente à do Natal, como acontecia há algumas décadas atrás. Mas a Páscoa é uma “festa de adultos” e não de crianças (que me desculpem os teólogos!), de que só aqueles compreendem e aceitam… ou rejeitam o significado.

Enquanto no Natal há a promessa terrena de um princípio de vida, o caminho que conduz ao Gólgota é cheio de sombras. E nele se perde um pouco, há dois mil anos, a alegria final.

Ouvindo há dias o testemunho de um rabino que enfaticamente negava a autenticidade dos Evangelhos, para se limitar e tão só à narrativa da Tora, não pude deixar de pensar que as razões de incredulidade e estranheza pelo Messias que aquele pregador invocava – e em defesa pureza da Fé dos Patriarcas – era afinal argumento que se podia utilizar contra o judeo-cristianismo, no seu conjunto, se me é permitida a expressão. Porque para não poucos o que é realmente estranho e inverosímil é o próprio conceito de Deus. E para milhões dispersos por todas as grandes religiões, a própria realidade de Deus…

 

As “fraquezas” de Deus feito homem

A propósito do tempo que estamos a viver, ouso fazer pois aqui uma pequeníssima digressão pelos caminhos nada fáceis, mas sempre exaltantes, da Fé.

Muitas vezes me tenho interrogado sobre como reagiria uma pessoa, totalmente desconhecedora dos princípios do Cristianismo, quando em contacto, pela primeira vez, com a Fé dos cristãos.

Para usar uma imagem um pouco comum, seria – imagino – como o aterrar de um marciano no nosso planeta (quando a ficção científica sugeria que eles existiam…). Entraria num universo desconhecido, feito de improvável e de maravilhoso.

Se não, vejamos. Um Deus que se fez homem. Nascido no lugar mais humilde. Para ensinar a todos os homens os limites da sua condição e, paradoxalmente, para os convidar ao regresso ao divino, donde surgiram.

Recordo com nostalgia as primeiras palavras com que o cardeal D. Angelo Sodano anunciou a morte de João Paulo II à multidão em vigília na Praça de São Pedro: «– O Santo Padre regressou à casa do Pai».

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Pois esse Deus do Génesis completou a Sua obra, nos primórdios da Criação, inculcando com um sopro, no primeiro casal humano, a sede do eterno. E também a sede e a fome da liberdade, para lá chegar. E quem diz liberdade, diz logicamente a possibilidade da recusa à hospitalidade do eterno. Aí nasceu a condição humana…

A frase, tantas vezes repetida, de que Deus se fez homem para os homens poderem ser deuses, é dos paradoxos mais belos e mais desafiantes para a racionalidade humana.

E dessa liberdade se fez tudo, no decurso dos séculos. As filosofias, as literaturas, a arte, a própria ciência, e mesmo antes as tradições, as culturas, e as respectivas cosmogonias sem Deus ou com deuses concorrentes…

Pelas filosofias e pelas literaturas se anteciparam novos céus e novos infernos. Pela arte se tentou a recriação do mundo. Pela ciência se cura, se inova, se transforma – e se destrói e se mata.

O homem redimiu-se e perdeu-se inúmeras vezes…

E “enganou-se” de divindade! O bezerro de ouro, com que Moisés foi brindado, ao descer da montanha, ter-se-á reproduzido, à revelia do fugitivo do Egipto, para ser adorada em cada época, desde então.

Muito tempo depois, esse Deus-feito-homem que andou pela terra há dois mil anos deixou uma das mensagens mais perturbadoras, o do auto-esquecimento, como via de acesso ao divino.

Sabendo que tocava exactamente no que de forma mais ostensiva caracteriza o ser humano: a de se recriar continuamente como o centro do mundo, erigindo-se como um deus competindo com O da origem, um deus particular, de um culto de que cada ser humano é o exclusivo sacerdote e seguidor.

E milhões aceitam o convite. E milhões lutam diariamente por reduzirem a sua “estátua pessoal” ao grão de areia que a imensidão do universo lhes sugere, como o seu tamanho provável, na ordem do cosmos.

Não é fácil. A razão é uma amiga íntima e fiel, mas quando inimiga é temível. Tem reencarnado frequentemente sob a forma do bezerro de ouro…

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Mas voltando-se para o Herdeiro que vem de novo partilhar a Herança, o que vêm esses milhões e milhões, desde há vinte séculos?

Um Deus-homem poderoso que comunicava com o Infinito, alterava as leis da natureza com o poder da sua voz; maravilhava com a inexcedível magia que a todos confundia. E o leproso foi limpo, o cego passou a ver, o morto ressuscitou… para Ele próprio acabar por morrer numa cruz, sem aparente protecção do Alto. E sentindo-se mesmo abandonado, como o reconheceu nos seus minutos finais. Com a sua fragilidade testada nos quarenta dias de deserto, não chamou pelos anjos para que O servissem.

O calvário foi pois um tempo decisivo. Onde o mistério se adensa.

Aí, a especialíssima combinação do Deus feito homem junta-se a síntese impossível do todo-poderoso e do barro humano, do divino que é afinal marcado pela vulnerabilidade tão perturbante: a de um destino a que não pôde ou não quis furtar-se.

Nesse momento preciso, o do significado do Gólgota, desertam os que não acreditam e só ficam os que aceitam a densidade do Mistério.

Chegado a este ponto, dou uma volta com o olhar (e em pensamento) para tudo o que toco, intuo, pressinto, para incluir tudo isso no Mistério.

O Mistério é existir. E por isso o mistério não é só o que se não vê. É também (e principalmente?) o que se vê… das pedras do caminho ao Sol que desponta em cada manhã.

 

A derrota, a vitória

Se a história acabasse aqui, tinha-se hoje tão só a biografia de Jesus – visionário. Aquele que ao mundo teria deixado apenas o produto da sua imaginação e uma dúzia de seguidores intoxicados pela alucinação. E dispostos a morrer por esta.

Mas o sonho renova-se com o que parecia ser o fim. E na Páscoa é que começa a grande aventura. Que tem na estrada de Damasco um episódio revelador de que o mais decisivo estava a começar.

E o Invisível pune momentaneamente o perseguidor, com uma cegueira que se desvaneceria com uma outra – e reveladora – claridade.

Toda a força e fragilidade do Deus-homem se espelha há dois mil anos na Igreja que criou, iniciada ela própria com a tripla cobardia do primeiro mensageiro designado. Antes de o galo cantar três vezes…

Santos e não santos são esses que prosseguem o sonho do visionário.

E que nos púlpitos de todo o mundo, das mais belas catedrais às capelas mais modestas, nas capitais selectas e nos lugarejos recônditos, recriam a paixão do Crucificado.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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