Uma praça-forte hospitaleira
Ao poeta e dramaturgo Gil Vicente foi encomendada a glorificação do feito em termos literários, o que resultaria na peça de teatro “Exortação da Guerra”, representada na véspera da partida da armada. A principal causa do pasmo geral seria, no entanto, a quantidade de cavalos a bordo das velas, facto realçado por Garcia de Resende, na sua “Miscelânea”, da seguinte forma: “O Duque vimos chegar/ A Azamor logo tomado/ Vimos sobre ele levar/ Mais de dois mil de cavalo/ Tantas léguas sobre o mar:/ Não há nenhuma memória/ Nem se escreveu em história/ De tantos cavalos irem/ Sobre o mar tão longe e virem”.
Os cavalos de hoje puxam carroças que desempenham ainda um importante papel no transporte colectivo. Mas tanto ali como em Mazagão, Arzila ou outra qualquer praça-forte, ninguém pensara ainda em utilizá-los para efectuar passeios turísticos em redor das muralhas, marcos incontornáveis sem os quais essas cidades suscitariam pouca ou nenhuma curiosidade.
À beira-rio não se vislumbrava significativa actividade piscatória, tão-só uma pequena embarcação a remos e dois homens que nela faziam reparações. Na margem oposta, assente num banco de lama seca, na época de chuvas habitualmente submergido, uma tenda de tecto cónico, e junto a ela um camião. Dir-se-ia um acampamento cigano, embora os dois botes atados a um poste de madeira sugerissem local destinado à pesca.
Seriam imensamente mais as embarcações no Morbeia quando a tropa portuguesa ali chegou, pronta a acrescentar às muralhas da cidade as suas próprias. Apesar do aspecto geral, a essência de Azamor continuava a ser muçulmana. Punha-se em valor o interior da almedina com apuradas obras de restauro, para posterior aproveitamento turístico. Não vi, no entanto, qualquer indicação de que essa fora outrora praça-forte estrangeira. Tão-pouco um breve passeio, de mera descoberta, pelos seus meandros labirínticos acrescentaria algo ao panorama ao qual me viera a habituar. Alguém afirmou: «Vê-se uma almedina, vêem-se todas». Não diria tanto, mas a verdade é que são mais as semelhanças do que as diferenças.
Também em Azamor havia casas à venda (e não eram poucas) e muitas das paredes estavam pintadas com obras de arte, fugaz concorrência a Arzila – todos os verões decorre aí um festival de pintura nas paredes do casario intramuros.
Particularmente coloridas, as paredes de uma padaria onde se cozia um reputado pão. Por insistência do dono, provei-o com todo o prazer. Tinha a textura e o sabor do nosso. Excelente. Mais à frente, um artesão de Marraquexe, mestre no tear, queixava-se da ausência de turistas, facto que pude comprovar. Um pouco adiante, certa mãe de família convidou-me a beber chá em sua casa. O patriarca assistia a um jogo de futebol, e um jogo de futebol, por mais insignificante que seja, é sempre um bom motivo para meter conversa. Também o eram as fotos de outros estrangeiros (no caso, italianos) que por ali tinham passado e bebido chá, havendo quem tivesse ficado para jantar, convite que também me foi feito. Admito, na inesperada recepção da mulher, uma boa dose de hospitalidade, embora houvesse ali, sobretudo, alguma esperança (e preocupação) em encontrar um marido estrangeiro para a filha mais velha, embora fosse a mais nova a fazer as honras da casa. De facto, vinte e sete anos era já uma idade avançada, segundo os cânones muçulmanos. A coisa ficou com uma troca de endereços electrónicos e a promessa de envio de fotos que tentaria cumprir à risca, se bem que fosse já longa a lista de compromissos do género.
Na viagem até Safim, a habitual conversa decorreria, para variar, com um funcionário público, um desses marroquinos esclarecidos que me surpreendeu com o seu discurso crítico ao regime. Habib falou o tempo todo acerca de um opositor do rei Hassan II que viveu exilado em França até que este o localizou e o mandou assassinar. A sua cabeça seria enviada para Rabat, como prova da missão cumprida.
«– Toda a operação contou com o apoio da Mossad, os serviços secretos israelitas», garantia Habib. «– Está a ver, não podemos falar demasiado, senão acontece-nos o mesmo. Neste país, quem tem coragem de falar o que sente não vive muito tempo».
A acusação era grave. Porque me teria dito aquilo?
O episódio relatado lembrava o processo utilizado pelo Estado sionista para eliminar os supostos responsáveis pelo atentado contra os atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, bem retratado no filme “Munich”, de Steven Spielberg.
Os marroquinos estão familiarizados com o hábito de mandar trazer a cabeça dos opositores ao regime, pois os turcos otomanos, mesmo antes de controlarem o País, de facto, exercendo a sua influência, utilizavam técnicas semelhantes. Do sultão de Constantinopla partiu a ordem que conduziria à execução do rei Almadi. O carrasco foi o próprio capitão de guarda, homem da inteira confiança de Almadi. Concluído o trabalho, o turco enviou a cabeça do seu antigo senhor para a capital do império.
Habib gostava de comparar o mencionado opositor a Che Guevara, embora ressalvasse o facto de o guerrilheiro argentino ter recorrido às armas, enquanto o marroquino utilizara apenas argumentos políticos.
Joaquim Magalhães de Castro