O nosso tempo

Apontamentos de viagem

Cidade do México, 12-17 de Fevereiro de 2016. O avião da Alitalia aproxima-se lentamente da pista. A figura inconfundível surge à porta da aeronave e lentamente, cautelosamente, desce as escadas. E uma nova aventura começa. Com cumprimentos ao Presidente e não só.

Privilegiados pelo seu contacto serão, como sempre, os doentes, os detidos, os mais velhos que acarinha, a multidão nas ruas, crianças que beija, gente que o acolhe das mais diversas maneiras.

O grande comunicador não deixa de nos surpreender. A imagem do senhor já idoso, figura de pai ou de avô, está presente em todo o lado. Nas fotos, nos cartazes, nas revistas, nos jornais, nos ecrãs de televisão, nas redes sociais, nos portais da Internet… até nas canções que se improvisam.

Como omnipresentes estão o amarelo e o branco, as cores “nacionais” do minúsculo Estado que chefia.

Não é Rei, não é Presidente. Não tem sucessão dinástica a assegurar, nem partido político, dentro do qual tenha que lutar pela permanência como chefe. E todavia lidera uma das instituições religiosas mais “políticas” do mundo, no sentido da intervenção cívica, social que inspira.

O conclave que o elegeu “resolveu” tudo quanto à sua situação pessoal. Sem resolver nada, pelo contrário, do que o espera logo a seguir à investidura: a agenda papal está e estará sempre em aberto, porque ditada pelos acontecimentos do mundo.

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Nem sequer santo é . «Rezem por mim!» – não se cansa de repetir.

E a pior injustiça que se lhe poderia fazer seria erigir-se-lhe, ainda que simbolicamente, um altar, colocando-o nele. Ou convertê-lo em objecto de algum culto de personalidade, o que significaria traí-lo, no essencial da sua missão.

O Papa não é a Igreja. A Igreja não é só o Papa. Mas aquela é hoje vista e reflectida, cada vez mais, através da personalidade que ele, Francisco, exprime.

E quando essa identificação não é total (muitas vezes não o é…), com o episcopado, com os sacerdotes, com os leigos, há um sentido acrescido de urgência, para os que estão atrasados e é forçoso que se adaptem ao ritmo da sua caminhada.

Assim o exigem os milhares e milhares que o aguardam e o seguem, por todo o lado, sedentos de uma mão que ajuda, de uma presença que reconforta.

Revendo a sua homilia na Catedral de Nossa Senhora da Aparecida, no Rio de Janeiro, reproduzida no essencial em toda a parte e também no México, mais se me acentuou a ideia de quem aponta o caminho e como o aponta: «Saiam dos quartos fechados e dos tectos protectores e vão para a rua ou onde são precisos! Não sejam funcionários do divino! Não convertam a Igreja numa ONG!». Eco que se repetiu há dias, dirigindo-se particularmente aos religiosos consagrados do México.

Mas o sorriso extrovertido, a gargalhada franca, os braços abertos, encerram também o mistério de uma alma que se recolhe subitamente em meditação, em oração, mesmo por entre a algazarra dos momentos festivos, de celebração e convívio. E aí presenciamos o seu súbito regresso ao silêncio interior, o lugar onde reside o essencial.

 

As escolhas de cada um

As viagens do Papa ao estrangeiro constituem, para além de peregrinações de grande intensidade espiritual (para os crentes), um gigantesco fenómeno de comunicação, à escala global. Nunca visto até aqui, nem no tempo desse outro grande missionário-viajante que foi João Paulo II.

Quer se goste ou não – e muitos não gostarão… – é assim.

Tal fenómeno, tornado hoje possível pela simultaneidade das coberturas televisivas e digitais, permite inclusivamente analisar essa característica associada da extraordinária adesão popular, com os trajectos apinhados de gente, na extensão de quilómetros e quilómetros, em qualquer lugarejo do fim do mundo, como vimos no Mali ou, mais recentemente, em Chiapas, no México.

Qualquer tentativa de identificar o Papa com o tipo comum do líder a que nos habituámos, noutros contextos – falha. Pela espontaneidade dos comportamentos, pela imprevisibilidade dos gestos, pela sinceridade do olhar, pela humanidade do afago.

Aqui não há cosmética que consiga substituir a genuinidade do personagem. Era preciso ser um actor extraordinário (e mesmo assim…) para electrizar como o consegue! E a corrente passa. E a mensagem também.

E é a mensagem que importa.

O Papa sabe que a sua importância de mensageiro está na mensagem. Que não vale principalmente por si (pessoa extraordinária que seja) mas pela Palavra de que é veículo. E esta tem a extraordinária ambição de tocar toda a sociedade, de obrigar a rever todos os preconceitos, de desconstruir todos os hábitos, de obrigar a reconsiderar o modo de ser vizinho… e companheiro… e cidadão…

E de organizar a economia, inspirando-lhe mais humanidade. E de pensar a cultura, conferindo-lhe mais autenticidade. E de recriar o sentido do lazer, privando-o eventualmente do comercialismo que hoje tão abusivamente o invade… etc., etc… num processo que começa no íntimo de cada um.

Quando as câmaras da televisão focam os grupos compactos de pessoas, escutando o Papa, rezando com o Papa, vêm-se frequentemente olhos fechados e lábios que ciciam. Porque tudo começa, de facto, no íntimo de cada um.

E é nesse olhar-o-mundo-a-partir-de-dentro que reside a capacidade de o transformar, decidindo pessoalmente de modo diferente.

Uma mudança de atitude, individual e colectiva, sobre o mundo – é o que pretende o Papa, o único líder religioso à escala global com uma agenda tão abrangente que a todos interpela e a todos toca.

Não como um imperador que tudo invade. Mas, simplesmente, como um irmão mais velho que a todos acompanha.

Original tal desígnio? Na sua expressão mais “recente”, tem dois mil anos. Mas tem de facto a idade do homem, a idade do seu aparecimento no mundo.

 

Uma agenda ambiciosa

Se percorrermos as intervenções do Papa nesta sua viagem ao México, bem como os lugares que visitou, percebemos o que há de comum com todas as suas viagens anteriores. O Papa vai onde é preciso ir, para contactar as pessoas mais vulneráveis e aflorar as questões mais sensíveis.

Por indicação e conselho de núncios apostólicos e Igrejas nacionais, o trabalho preparatório de cada deslocação é criterioso. Como se vê através do perfeito conhecimento que o Papa tem das audiências a que se dirige, das situações sociais que aborda e da mensagem adequada aos líderes nacionais.

As questões abordadas são todas ou quase todas sensíveis: as que afectam interesses instalados (lembro a crítica ao clientelismo político e à corrupção nas Filipinas); a necessidade da reconciliação inter-religiosa (Quénia, Mali, mas também Palestina e Turquia, entre outros); a denúncia do crime organizado (Sicília, Chiapas), o escândalo humanitário dos refugiados (Lampedusa)…

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No final de cada viagem do Papa o que fica? O sabor das palavras, voz cada vez mais distante da esperança que o tempo há-de desvanecer?

A saudade antecipada de um extraordinário tempo de comunhão?

Tudo isso. E o desejo de que volte depressa. De que regresse como familiar ou amigo chegado. Mesmo que tal sentimento seja ilusório, acreditar nesse “milagre humano” já reconforta…

Carlos Frota 

Universidade de São José

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