O Caminho da Minha Vocação – 1

NA PRIMEIRA PESSOA

O Caminho da Minha Vocação – 1

No dia 4 de Dezembro de 2023 fiz 86 anos de idade. Com alegria, disse ao bom Deus: “Muito, muito obrigado”. Não só pelo dom da vida, mas também pelo dom da minha vocação dominicana; em particular por me manter como padre dominicano até hoje, 61 anos após a minha ordenação. Tal como a vida, a vocação é um dom imerecido – e um mistério.

Uma nota importante: todos os cristãos – e muitos outros – são chamados por Deus. Todas as vocações – para os diferentes estados de vida – são iguais em dignidade: Todos os chamamentos têm o mesmo objectivo: o céu. Todos – sacerdotes, religiosos e religiosas, fiéis leigos – têm um único caminho a seguir: Jesus Cristo. Todos são discípulos do Senhor. No fundo, todas as vocações são iguais, isto é, “nem melhores nem piores: simplesmente diferentes” (M. Gelabert). Toda a vocação implica um amor apaixonado por Jesus.

Permitam-me que vos conte alguns pontos altos da minha vocação e as principais armadilhas que encontrei no caminho até hoje. Centrar-me-ei em quatro pontos: primeiro, falar-vos-ei dos principais passos que conduziram à minha ordenação sacerdotal; segundo, da minha missão como dominicano; terceiro, dos principais acontecimentos negativos que – graças a Deus – não me apontaram a porta de saída; e, finalmente, da força que me sustenta até hoje.

A JORNADA DA MINHA VOCAÇÃO

Há um título de um livro muito conhecido: “Todo empezó en Galilea” (“Tudo começou na Galileia”). Para mim, tudo começou numa pequena cidade de Ávila chamada El Oso. Num dia frio de Inverno, 4 de Dezembro de 1937, nasci numa família modesta de agricultores. Tenho mais três irmãos e duas irmãs. Adoro as minhas raízes, a minha cidade, a minha família, a minha gente. Do meu pai, aprendi a justiça imparcial e o empenhamento apaixonado no meu trabalho. Da minha mãe: o amor, a ternura, a oração e a compaixão para com os pobres.

Aos sete anos, tornei-me acólito na paróquia da cidade. Gostava de ser acólito e de servir os meus párocos. Gostava, sobretudo, de ser acólito na Semana Santa – então celebrada com grande solenidade e sobriedade. Durante a Semana Santa conheci os primeiros dominicanos de Ávila: celebravam frequentemente o Tríduo Santo na cidade. Lembro-me de ter adorado a sua pregação e o seu hábito (branco e preto como a vida e a morte).

Na Escola Primária eu era um rapaz normal que gostava de se inclinar na cadeira. Uma manhã – penso que foi na Primavera de 1948 – o professor, conhecedor e sempre pontual, D. Jacinto Santos, chamou o meu nome e pediu-me para me levantar. Disse-me: “Vais para os Dominicanos”. Senti-me muito feliz! Alguns meses mais tarde, um dominicano veio fazer um exame oral a mim e a outro colega da cidade. Passei por pouco: Estava muito nervoso! Fomos ambos aceites e, em Outubro de 1949, fomos para La Mejorada (Valladolid), a nossa escola apostólica, para começar os estudos secundários com os Dominicanos. Fui com muita alegria, mas também com muita tristeza, a tristeza de deixar os meus pais, a minha família e a minha cidade (lembro-me da primeira noite em que não dormi nada!). Recordo as palavras do grande escritor T. S. Eliot: “Ser humano é pertencer a uma região particular da terra”. A árvore da minha vida cresceu e sempre assentou na minha querida cidade El Oso, em Ávila, Castela.

Depois de dois anos em La Mejorada, fui com os meus colegas (74) para Santa Maria de Nieva (Segóvia) durante os três anos seguintes e terminei o Liceu em Maio de 1954. Gostei muito de estudar durante os meus anos de liceu. Gostava das humanidades e das línguas, da literatura, da música (em Santa Maria, comecei a tocar piano).

Recebemos o hábito dominicano em Ocaña (Toledo), a 12 de Julho de 1954. Gostei do meu ano de noviciado (apesar das dificuldades normais) e melhorei a minha relação com Deus e com os outros. Aprendi a rezar como um dominicano e a cantar Canto Gregoriano, que eu adorava. Comecei a amar Nossa Senhora do Rosário, São Domingos e os nossos santos dominicanos, em particular São Tomás de Aquino, Santa Catarina de Sena, São Martinho de Porres e os mártires da nossa Província missionária dominicana de Nossa Senhora do Rosário. Tínhamos então de aprender de cor a Regra de Santo Agostinho em Latim (era o centro do nosso exame antes de professar). Lembro-me do meu Mestre de Noviços, o padre Rodrigo, com muito amor: já era velho, amava-nos, era apaixonado pela Ordem, por Jesus, por Maria, pelo nosso Padre Domingos… Ensinou-nos a vida religiosa e a espiritualidade dominicana, os votos, etc. Explicou-nos os lemas da Ordem, a sua espiritualidade e a sua vida. Explicou-nos os lemas dos dominicanos: Veritas; Laudare, Benedicere et Praedicare; e Contemplata aliis tradre. No final do Noviciado, fizemos a nossa profissão simples em Ocaña, a 11 de Julho de 1955. (A propósito, a nossa Província Dominicana é uma Província missionária, especialmente orientada para a Ásia. Esta é a razão pela qual fazemos um quarto voto: ir para as terras de missão, onde quer que sejamos enviados).

Transferimo-nos então para o nosso grande convento de Ávila, o Mosteiro de Santo Tomás, onde estudámos os três anos de filosofia: em Ávila, a bela e mística cidade de Santa Teresa e de São João da Cruz. Desde criança que também gosto destes dois santos carmelitas. Ao orientar um retiro para as Irmãs Dominicanas de Manila (onde citei muitas vezes os místicos de Ávila), uma irmã perguntou-me: Por que se tornou dominicano e não carmelita? Porque Deus me chamou para ser dominicano – e eu adoro-o. Gostei especialmente, durante os estudos de filosofia, dos relatos inspiradores dos nossos missionários, as lições de pregação e de utilização da rádio (tínhamos uma estação de rádio durante o terceiro ano) pelo padre Florencio Muñoz, que era o nosso modelo de pregador, um dos melhores pregadores de Espanha na altura. Durante o terceiro ano de filosofia tínhamos de pregar um sermão no refeitório durante o almoço. Lembro-me de ter pregado sobre a Primeira Palavra de Jesus a partir da Cruz. Nos meus anos de filosofia aprendi a apreciar a importância essencial do estudo, da oração e da vida comunitária: as três ordens para a pregação. Comecei a escrever: o meu primeiro artigo (coluna) intitulava-se “Se Santo Tomás voltasse”.

Fiz o primeiro ano de teologia em San Pedro Mártir (Alcobendas, Madrid). A minha turma e as outras turmas de filosofia (mais de cem alunos no total) inauguraram o Convento de San Pedro Mártir em 1958. Aqui, a 3 de Dezembro de 1958, fiz a minha profissão solene. Lembro-me de ter perguntado ao meu amável e dedicado Mestre de Alunos, padre Pedro Tejero, se eu tinha vocação, porque tinha algumas dúvidas superficiais (eu tinha o nervosismo normal antes de uma decisão importante na vida). Respondeu: “Faz a Profissão Solene, Deus quer que sejas missionário dominicano. Amém!”.

Gostei muito do meu primeiro ano de estudos teológicos em Madrid, e estou muito grato aos meus mentores e conselheiros. Muito raramente saíamos dos muros dos conventos.

Com outro colega (um ano mais tarde juntou-se a nós) fui enviado para a Casa de Estudos Dominicana em Washington DC (Estados Unidos) para estudar os três anos restantes de teologia e mais um para a licenciatura em teologia. No início, foi terrivelmente difícil e doloroso: não falávamos Inglês. Conseguíamos comunicar em Latim com os nossos professores. Com os nossos colegas? Nem em Inglês, nem em Espanhol, nem em Latim. Algumas vezes deitávamo-nos de noite (os dois no mesmo quarto) muito tristes, quase a chorar. Mais tarde, desfrutámos da nossa estadia em Washington: provámos a liberdade (um dia por mês, cada um de nós era livre de ir a qualquer lado; recebíamos cinco dólares). Os padres americanos trataram-nos muito bem, bem como os nossos queridos colegas (durante os primeiros anos, foi-me permitido responder aos meus exames em Latim; estudei em Espanhol).

Em Washington tinha dois ídolos: John F. Kennedy (assisti à sua tomada de posse como Presidente, o primeiro presidente católico dos Estados Unidos, em Janeiro de 1961, quando o ouvi dizer: “Não perguntes o que o País pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pelo teu país”). O meu segundo ídolo: o bispo Fulton Sheen, que ouvi pregar no belo Santuário da Imaculada Conceição, que fica quase em frente à nossa Casa Dominicana (desta vê-se a Universidade Católica da América). Aprendi muito com o bispo Fulton Sheen, o maior pregador e o melhor televangelista católico que conheci: Quando pregares, dizia ele, não te sentes, porque não se acende um fogo sentado! (Fulton Sheen é actualmente Venerável da Igreja. Rezo para que seja beatificado em breve e, mais tarde, canonizado.)

Fui ordenado sacerdote a 14 de Junho de 1962, na igreja de São Domingos em Washington. Fomos ordenados onze sacerdotes dominicanos: três da nossa Província Dominicana de Nossa Senhora do Rosário (Espanha) e oito da Província Dominicana de São José (Estados Unidos). Durante a ordenação, senti-me muito bem, mas também entorpecido (a propósito, no noviciado éramos 39; co-noviços espanhóis ordenados: dezasseis). Recordo sempre as palavras do nosso bispo ordenante, D. Russell, quando me entregou o Livro dos Evangelhos (as mesmas palavras que me foram dirigidas pela primeira vez – alguns meses antes – quando fui ordenado diácono): “Recebe o Evangelho de Cristo, de quem agora és arauto. Acredita no que lês, ensina o que acreditas e pratica o que ensinas”. Depois da ordenação, senti-me bem, mas também triste: não tinha família, apenas alguns amigos e algumas pessoas da Embaixada de Espanha em Washington. A minha primeira missa solene, celebrada na minha cidade, a 29 de Junho, festa do nosso padroeiro São Pedro Apóstolo, foi uma alegria sem limites!

Pe. Fausto Gomez, OP

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