Na formação das Sagradas Escrituras

A Vulgata Latina

Hoje vamos até às origens da Bíblia enquanto livro. Muito se fala da Bíblia, nem sempre de Sagradas Escrituras, menos ainda da origem desta autêntica biblioteca que é aquele livro dos livros. Por Vulgata entenda-se a forma latina abreviada de vulgata editio (“edição”), ou vulgata versio (“versão”), senão até vulgata lectio (“leitura”). O termo em si significa “no vulgar”, na língua do vulgo, ou seja, do povo, popular. Língua essa que era o Latim. Daí designar-se como Vulgata, termo do Latim medieval.

A Vulgata é a versão da Bíblia em Latim, a partir do Grego e do Hebraico (e Aramaico) composta por São Jerónimo de Estridão a partir de finais do séc. IV (c. 382) até aos inícios do séc. V, em cumprimento do encargo que lhe fora feito pelo Papa Dâmaso I em 382. A intenção era a de substituir a Vetus Latina (“Latim Antigo”, ou “Velho”), a Bíblia anterior, portanto, à Vulgata, um conjunto de textos bíblicos traduzidos para o Latim, obra desigual que não fora traduzida por uma única pessoa ou instituição, sem uma edição uniforme. Com uma qualidade variável, tal como o estilo heterogéneo dos livros, a Vetus Latina apresentava traduções do Antigo Testamento quase sempre a partir da Bíblia grega dos Setenta (ou “Septuaginta”), como os textos do Novo testamento provinham de traduções gregas.

É importante referir que a Vetus Latina é uma designação colectiva dada aos textos bíblicos em Latim, traduzidos a partir do século II, a partir do Grego. Saliente-se também que não existe uma única Bíblia da “Vetus Latina”, mas sim uma grande colecção de textos bíblicos em forma de manuscritos que contêm testemunhos de traduções latinas de passagens bíblicas anteriores à Vulgata de São Jerónimo. Por exemplo, um estudioso da Vetus Latina, com base no evangelho de São Lucas, focando-se no excerto de Lc 24,4-5 em manuscritos da Vetus Latina, encontrou “pelo menos de 27 redacções diferentes”.

Por isso, era imperativa uma compilação uniforme, com critério e com base numa tradução homogénea e coerente. Na rápida difusão do Cristianismo a partir do séc. IV, impunha-se uma Bíblia igual e clara, mais exacta que as anteriores, legível e de entendimento fácil por todos, ou por mais pessoas. Por isso foi escrita em Latim corrente, ou “vulgar” (daí vulgata), não em Latim clássico, “de Cícero”, como dizia São Jerónimo. O Antigo Testamento foi todo traduzido directamente do Hebraico (e Aramaico, língua proto-hebraica, falada por Jesus Cristo, por exemplo), enquanto o Novo não se sabe com segurança se foi directamente a partir dessas línguas semíticas ou, também, com base em revisões de antigas traduções latinas. Refira-se que as traduções de São Jerónimo não foram servis e literais, mas, para além de o fazer com elegância de estilo, esforçou-se por salientar a autenticidade e valor do pensamento expresso em Hebraico pelos autores sagrados. Muitos vezes apensas se retocou por uma questão de estilo, porém.

Não existe nenhum manuscrito do original de São Jerónimo, apenas cerca de oito mil cópias, mais ou menos alteradas (St. Gallen, Fulda, Amiens…). A Vulgata foi sendo sujeita a alterações com o decurso dos tempos (substituição de vocábulos difíceis por fáceis, correcções, etc.), aumentando o número de versões, ou recensões, do pretenso texto original. No Concílio de Trento (1545-63) as versões eram em grande número, todas elas reivindicando a autenticidade e genuinidade do texto original, que já não existia claro, mais de mil anos depois.

O Concílio declarou a Vulgata como “autêntica”, o que significava que o seu texto podia ser usado como referência, preferentemente a outras versões latinas, mas sem exclusão de recurso aos textos originais. Promoveu-se ainda uma edição oficial da Vulgata para uso comum. Mas que Vulgata? Para isso, foram nomeadas sucessivas comissões para a sua revisão, a partir da comparação, exegese, estudos, até se conseguir uma edição revista em 1590, iniciada com Sisto V, mas concluída apenas por Clemente VIII em 1592 (Vulgata Clementina). Esta Vulgata Sisto-Clementina, diríamos, passou a ser o texto oficial da Bíblia Católica, no século das Reformas e das traduções da Bíblia para línguas vulgares, a partir de Lutero. Mas era necessária uma versão totalmente correcta, ou o mais próximo possível da tradução de São Jerónimo. As diferenças continuavam, em estilo e sentido, as polémicas logo apareciam e suscitavam mais dúvidas e diferenças. Por isso em 1907 Pio X confiou aos Beneditinos a preparação de uma edição crítica, a ser apurada a partir de revisões, estudos, comparações, um trabalho ciclópico, a exigir uma “paciência beneditina”. O texto daí resultante (Biblia Sacra iuxta latinam vulgatam versionem) viria a ser a base oficial da Bíblia Católica e substituir a Vulgata Clementina, então ainda em uso.

Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi impulsionada a revisão da Vulgata, sobretudo para uso litúrgico, criando-se uma comissão pontifícia para o efeito, que continua, no fundo, o trabalho, iniciado em 1907, de acordo com os mais apurados preceitos e metodologias de crítica textual, tradução e revisão, a partir dos textos aramaicos, hebraicos e gregos, além de estudos comparativos das edições latinas, com apoio e intervenção de académicos e peritos. A revisão desta Comissão, iniciada em 1965, terminou em 1975, tendo sido promulgada pelo Papa João Paulo II, em 25 de Abril de 1979, denominando-se Nova Vulgata, ficando estabelecido que seria a nova Bíblia oficial da Igreja Católica, com um renovado aparato crítico e hermenêutico. A Nova Vulgata é a referência, desde a instrução pontifícia Liturgiam Authenticam, de 2001, para todas as traduções de textos e ofícios litúrgicos para as línguas vernaculares.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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