Costa da Memória

Rota para Tombuctu

Toda essa área, sobretudo a dita “rota dos cashbás”, de Errachidia a Ourzazate e daí até Marraquexe, tem sido utilizada como cenário de diversos filmes, alguns deles êxitos de cartaz. Ouviria Isabel dizer que existiriam em Ourzazate uns estúdios da Castello Lopes, possibilidade que ficou por confirmar. No que me diz respeito, e já que estamos no universo do cinema, posso afirmar que tive o privilégio de utilizar a casa de banho do luxuoso Muxuca, «o hotel onde ficou alojado Tom Cruise», como diziam as brochuras turísticas.

Em Erfoud deparámos com mais expedições de veículos todo-o-terreno, alguns com matrícula portuguesa. Ali, pese toda essa modernidade transitando nas ruas bem asfaltadas, era ainda a hospitalidade dos nómadas que ditava as regras. Frente a uma pequena loja vi uma caixa de madeira repleta de tâmaras destinadas ao viandante que por ali passasse.

«– É uma tradição antiga dos berberes do deserto. Só se tiram as tâmaras que se deseja comer», apressou-se a esclarecer Hassan.

Er Rissani, mais a sul, é ainda mais pequena do que Erfoud. Nas suas proximidades repousam as ruínas de Sijilmassa, cidade lendária, capital de um principado islâmico, transformado posteriormente numa das mais importantes cidades da rota transariana. Tombuctu fica para o Sul, como indicava uma estranha placa. Da glória de outrora restavam dois portões e umas pedras amontoadas.

Não consta que tenham andado por ali portugueses, pelo menos a nível oficial, no entanto havia quem atribuísse origem lusa a partes do complexo arqueológico. É assim um pouco por todo Marrocos, interior ou costeiro. Para o comum dos marroquinos Portugal esteve em todos os cantos e recantos do País.

Em Er Rissani visitámos Ahmed, irmão de Hassan. Estivera casado com uma rapariga bastante mais nova escolhida pela família, mas o arranjo não funcionara e o divórcio foi uma inevitabilidade ao fim de um ano de união.

«– As mulheres marroquinas não me interessam», confessava Ahmed, destacando logo de seguida os benefícios da Internet que lhe permitira conhecer Debora, uma carioca, também divorciada, «vizinha do Ronaldinho». Visitara-o no ano anterior e agora era a vez de Ahmed ir ao Rio de Janeiro. Não necessitava de visto. O problema era o custo e a morosidade da viagem, obrigando-o a umas horas em trânsito na Europa comunitária. Mas isso seria «só para o ano», quando conseguisse juntar alguns milhares de euros.

No deserto, caso ignorássemos a passagem das expedições europeias, poderíamos dizer que a vida seguia ao ritmo dos dromedários, lentamente desfilando, em cáfilas, quebrando o efeito produzido pelas fatas morganas. Ultrapassadas as palmeiras do oásis, eis-nos em pleno deserto aberto rumo ao erg de Merzouga, as famosas e gigantescas dunas de areia amarela e por vezes cor de laranja que chegam a ter centenas de metros de altura. São a versão minúscula do que podemos encontrar no Sara argelino numa dimensão incomparavelmente maior.

Passámos quatro noites e três dias em Merzouga, alojados no Nomad Palace, um desses hotéis cashbás, a uns bons quilómetros da povoação. Estavam ali hospedados uma excêntrica professora norte-americana de meia-idade e um numeroso grupo de espanhóis aficionados do motocrosse e da moto-a-quatro nas dunas do deserto, prova de que há gostos para tudo. Enfim, o local não fazia nada o meu género, mas ali fiquei por respeito aos meus companheiros de viagem, e, porque não, para viver outro tipo de experiência. Quanto mais não fosse para me certificar de que aquilo de que gosto mesmo é de me alojar no centro das povoações, onde existem possibilidades de escolha mesmo que nessa escolha haja muito pouco por onde escolher, como era o caso de Merzouga.

Chegariam, entretanto, ao Nomad Palace um australiano descendente de chineses de Cantão, um casal inglês atípico e uma japonesa que deixou em alvoroço alguns dos rapazes que trabalhavam para o Ali, o dono do local. Todos estes novos hóspedes tinham agendado no seu programa de férias o ritual da marcha em dromedário até a um oásis situado na base das dunas, com dormida em tenda berbere e direito a assistir ao nascer do Sol, tudo pela módica quantia de trinta euros.

O pessoal do Nomad Palace, talvez para criar alguma adrenalina, fazia questão de nos lembrar a proximidade da fronteira com a Argélia. Pelos vistos, minuciosamente patrulhada.

«– Se te encontram fora do caminho não hesitam em arrumar contigo», avisara Hassan, passando com lentidão os dedos pelo pescoço, elucidativo sinal que tirava a vontade a quem pretendesse ir espiolhar para aquelas bandas.

Do programa turístico constava também uma visita à aldeia dos “berberes negros”, antepassados dos nómadas vindos do Sudão, que na sociedade local continuavam a ter uma posição subalterna. Para sobreviver, tocavam música para os visitantes, mas não eram interesseiros como esses “nómadas” de turbante, túnica e sandálias só para turista ver, que nos falavam com frases feitas e adoravam estourar o dinheiro nos copos, noite após noite. Cerveja, vinho, uísque, todas as bebidas eram bem-vindas.

Joaquim Magalhães de Castro

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