A euro-asiática Molly Pereira
Há meses que não chovia. A terra estava seca e ao longo dos canais avistavam-se pescadores munidos de pequenas baterias ligadas a um arame tentando electrocutar os peixes retidos nas poças. Passamos umas horas ao ar livre, a usufruir de uma delicada brisa, «natural air con», como dizia Patrick, e a petiscar “lepete”, acompanhado de chá e “toddy”, precisamente na casa que nos tinha acolhido, a mim e ao falecido pároco de Shwebo. O tatuado anfitrião lembrava-se perfeitamente dessa visita, pelo que veio muita gente deleitar-se com as fotografias das revistas Vida Mundial e Macau que trazia comigo, dado que nelas tinha publicado reportagens sobre a comunidade bayingyi. Quase arrancavam as páginas ao reconhecerem-se, ou a muitos dos seus, nas fotos impressas. Uma vez mais quiseram que cantasse temas portugueses e apresentaram-me novos bayingyis com óbvios traços caucasianos, para que os fotografasse. Antes do regresso a Shwebo, no momento em que bispo dava a bênção, o japonês, já bem bebido, confessava o quão fácil era «apaixonarmo-nos por estes lados». A quem o dizes, amigo Dragon!
Em Kan Yue almoçámos num desses restaurantes que de chinês apenas tinham o nome. Usava-se e abusava-se ali do agridoce, até na sopa que sempre antecedia o prato principal. Valeram as cervejas Mandalay, bem fresquinhas, embora os padres, mandava o decoro, ou simplesmente manutenção das aparências, optassem pela água mineral.
«– Olhem só para tudo o que comemos, e paguei pouco mais de 300 kyats», dizia o bom do Patrick.
A uma mesa ao lado almoçava um homem de olhos verdes, um desses bayingyis urbanos, tresmalhados. Era funcionário dos caminhos-de-ferro e tinha como apelido um Brito bem português. Nas cidades, talvez devido à administração colonial, muitos dos católicos mantiveram o nome de família. Daí a abundância de Sousas, Castros e Abreus no Sul de Myanmar.
Numa das passagens do romance de George Orwell “Os Dias da Birmânia”, retrato mordaz da decadência do império britânico, cujo enredo nos remete para a época da terceira guerra que os ingleses infligiram na Birmânia, em 1885, Ellis, um dos personagens, protótipo do colono, eurocêntrico e profundamente racista, menciona um tal Maxwel, «que passa a vida atrás das pegas euro-asiáticas». É este o tom: «Não negue Maxwell, chegaram-me aos ouvidos as suas andanças por Mandalay com uma rameira malcheirosa chamada Molly Pereira. Aposto que casava com ela se não o transferissem para aqui, não é? Todos vocês parecem gostar daqueles palonços encardidos e fedorentos».
Ora, esses “encardidos e fedorentos” eram, ainda nas palavras de Ellis, «uns nativos católicos», contra os quais se insurgia, pois estavam «todos repimpados na nossa igreja», uns tais Samuel e Francis, designados «focinhos amarelos».
Este parágrafo deixa bem patente a postura britânica face à portuguesa em termos de política colonial.
Mais adiante, Flory, personagem principal dessa obra de Orwell, um homem que lutava para manter a dignidade face à mesquinhez da sociedade expatriada, responde nos seguintes moldes a uma inglesa recém-chegada que estranhara a presença de umas «criaturas bizarras» na igreja, ao Domingo, sendo que uma deles parecia quase branca: «São euro-asiáticos, filhas de pais brancos e de mães nativas. Demos-lhes a amigável alcunha de Barrigas Amarelas».
Uns parágrafos adiante, o escritor, pela voz de Flory, traça o retrato da realidade bayingyi daquela época: «Os europeus não lhes tocam nem com um pau e vedam-lhes o acesso aos serviços governamentais subalternos. Nada lhes resta senão mendigarem, a menos que desistam por completo de pretenderem ser europeus. E, para sermos francos, não é de esperar que os podres diabos o façam. O seu quinhão de sangue branco é o único haver que possuem».
Como se depreende desta passagem, vem de longe a reivindicação dessa tão especial casta de luso-descendentes.
Na entender de Ellis, os euro-asiáticos «usam aqueles capacetes coloniais enormes para nos lembrarem de que possuem crânios europeus. Uma espécie de cota de armas». Depois, ao notar que Flory simpatiza com eles, acrescenta: «Têm um aspecto terrivelmente degenerado, não têm? Tão escanzelados, tão andrajosos, tão bajuladores, e as caras de modo nenhum são honestas. Acho que estes euro-asiáticos são muito degenerados e você não? Ouvi dizer que os mestiços herdam sempre o pior de ambas as raças».
Flory responde-lhe que isso poderia ter a ver com a forma como eram criados e educados, lembrando-o de que eram os brancos os responsáveis pela sua existência.
Indigna-se o racista Ellis: «Mas, afinal de contas, você não é responsável. Quero eu dizer, só um homem com instintos muito baixos seria… hum… capaz de ter relações com mulheres nativas, não é verdade?»
Flory, sarcástico, responde: «Estou inteiramente de acordo. Mas os pais daqueles dois eram clérigos, acho eu».
Joaquim Magalhães de Castro