«Não se trata apenas de migrantes»
Queridos irmãos e irmãs!
A fé assegura-nos que o Reino de Deus já está, misteriosamente, presente sobre a terra; contudo, mesmo em nossos dias, com pesar temos de constatar que se lhe deparam obstáculos e forças contrárias. Conflitos violentos, verdadeiras e próprias guerras não cessam de dilacerar a humanidade; sucedem-se injustiças e discriminações; tribula-se para superar os desequilíbrios económicos e sociais, de ordem local ou global. E quem sofre as consequências de tudo isto são sobretudo os mais pobres e desfavorecidos.
As sociedades economicamente mais avançadas tendem para um acentuado individualismo que gera a «globalização da indiferença». Neste cenário, os migrantes, os refugiados, os desalojados e as vítimas do tráfico de seres humanos aparecem como os sujeitos emblemáticos da exclusão, porque, além dos incómodos inerentes à sua condição, acabam muitas vezes alvo de juízos negativos que os consideram como causa dos males sociais. A atitude para com eles constitui a campainha de alarme que avisa do declínio moral em que se incorre, se se continua a dar espaço à cultura do descarte. Com efeito, por este caminho, cada indivíduo que não quadre com os cânones do bem-estar físico, psíquico e social fica em risco de marginalização e exclusão.
Por isso, a presença dos migrantes e refugiados – como a das pessoas vulneráveis em geral – constitui, hoje, um convite a recuperar algumas dimensões essenciais da nossa existência cristã e da nossa humanidade, que correm o risco de entorpecimento num teor de vida rico de comodidades. Aqui está a razão por que «não se trata apenas de migrantes», ou seja, quando nos interessamos por eles, interessamo-nos também por nós, por todos; cuidando deles, todos crescemos; escutando-os, damos voz também àquela parte de nós mesmos que talvez mantenhamos escondida por não ser bem vista hoje.
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se também dos nossos medos. As maldades e torpezas do nosso tempo fazem aumentar «o nosso receio em relação aos “outros”, aos desconhecidos, aos marginalizados, aos forasteiros (…). E isto nota-se particularmente hoje, perante a chegada de migrantes e refugiados que batem à nossa porta em busca de protecção, segurança e um futuro melhor» (Homilia, Sacrofano, 15 de Fevereiro de 2019). «O problema não está no facto de ter dúvidas e receios. O problema surge quando estes condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas» (Homilia na Missa do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 14 de Janeiro de 2018).
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se da caridade. Através das obras de caridade demonstramos a nossa fé (Tg., 2, 18). E a caridade mais excelsa é a que se realiza em benefício de quem não é capaz de retribuir, nem talvez de agradecer. «Em jogo está a fisionomia que queremos assumir como sociedade e o valor de cada vida. (…) O progresso dos nossos povos (…) depende sobretudo da capacidade de se deixar mover e comover por quem bate à porta e, com o seu olhar, desabona e exautora todos os falsos ídolos que hipotecam e escravizam a vida; ídolos que prometem uma felicidade ilusória e efémera, construída à margem da realidade e do sofrimento dos outros» (Discurso em Rabat, Marrocos, 30 de Março de 2019).
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se da nossa humanidade. O que impele aquele samaritano – um estrangeiro, segundo os judeus – a deter-se é a compaixão, um sentimento que não se pode explicar só a nível racional. A compaixão toca as cordas mais sensíveis da nossa humanidade, provocando um impulso imperioso a «fazer-nos próximo» de quem vemos em dificuldade. Como nos ensina o próprio Jesus, ter compaixão significa reconhecer o sofrimento do outro e passar, imediatamente, à acção para aliviar, cuidar e salvar. Ter compaixão significa dar espaço à ternura. «Abrir-se aos outros não empobrece, mas enriquece, porque nos ajuda a ser mais humanos: a reconhecer-se parte activa dum todo maior e a interpretar a vida como um dom para os outros; a ter como alvo não os próprios interesses, mas o bem da humanidade» (Discurso em Baku, Azerbaijão, 2 de Outubro de 2016).
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se de não excluir ninguém. O mundo actual vai-se tornando, dia após dia, mais elitista e cruel para com os excluídos. Os países em vias de desenvolvimento continuam a ser depauperados dos seus melhores recursos naturais e humanos em benefício de poucos mercados privilegiados. As guerras abatem-se apenas sobre algumas regiões do mundo, enquanto as armas para as fazer são produzidas e vendidas noutras regiões, que depois não querem ocupar-se dos refugiados causados por tais conflitos. Quem sofre as consequências são sempre os pequenos, os pobres, os mais vulneráveis, a quem se impede de sentar-se à mesa deixando-lhe as «migalhas» do banquete.
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se de colocar os últimos em primeiro lugar. «Um espírito individualista é terreno fértil para medrar aquele sentido de indiferença para com o próximo, que impele a ignorar a humanidade dos outros e acaba por tornar as pessoas medrosas e cínicas. Porventura não são estes os sentimentos que muitas vezes nos assaltam à vista dos pobres, dos marginalizados, dos últimos da sociedade? E são tantos os últimos na nossa sociedade! Dentre eles, penso sobretudo nos migrantes, com o peso de dificuldades e tribulações que enfrentam diariamente à procura – por vezes, desesperada – dum lugar onde viver em paz e com dignidade» (Discurso ao Corpo Diplomático, 11 de Janeiro de 2016). Na lógica do Evangelho, os últimos vêm em primeiro lugar, e nós devemos colocar-nos ao seu serviço.
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se da pessoa toda e de todas as pessoas. Nesta afirmação de Jesus encontramos o cerne da sua missão: procurar que todos recebam o dom da vida em plenitude, segundo a vontade do Pai. Em cada actividade política, em cada programa, em cada acção pastoral, no centro devemos colocar sempre a pessoa com as suas múltiplas dimensões, incluindo a espiritual. E isto vale para todas as pessoas, entre as quais se deve reconhecer a igualdade fundamental.
– Não se trata apenas de migrantes: trata-se de construir a cidade de Deus e do homem. Na nossa época muitas são as pessoas inocentes que caem vítimas da «grande ilusão» dum desenvolvimento tecnológico e consumista sem limites (Laudato si’, 34). E, assim, partem em viagem para um «paraíso» que, inexoravelmente, atraiçoa as suas expectativas. A sua presença, por vezes incómoda, contribui para desmentir os mitos dum progresso reservado a poucos, mas construído sobre a exploração de muitos.
Queridos irmãos e irmãs, a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode-se resumir em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Mas estes verbos não valem apenas para os migrantes e os refugiados. Se pusermos em prática estes verbos, contribuímos para construir a cidade de Deus e do homem, promovemos o desenvolvimento humano integral de todas as pessoas e ajudamos também a comunidade mundial a ficar mais próxima de alcançar os objectivos de desenvolvimento sustentável que se propôs e que, caso contrário, dificilmente serão atingíveis.
Por conseguinte, não está em jogo apenas a causa dos migrantes; não é só deles que se trata, mas de todos nós, do presente e do futuro da família humana. Através deles, o Senhor convida-nos a reapropriarmo-nos da nossa vida cristã na sua totalidade e contribuir, cada qual segundo a própria vocação, para a construção dum mundo cada vez mais condizente com o projecto de Deus.
FranciscoPP
(*) Texto editado