Missangas, Norte-coreanos e Moçambola
Antes de partir para o Norte, compete-me conhecer algumas das pessoas intimamente ligadas à Ilha de Moçambique e que ao longo processo lhe permitiria obter a distinção Património da Humanidade, em 1993. Uma dessas pessoas é Luís Filipe Pereira, colega de cátedra do reputado historiador Joaquim Romero Magalhães e actual presidente da Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique.
«–Vais à Ilha?». Os moçambicanos nunca acrescentam a palavra Moçambique quando se referem à ilha que durante séculos foi refúgio vital, centro administrativo, atalaia de um estreito que dava acesso ao mundo efabulado das Índias. Luís Filipe Pereira considera a sua terra natal a jóia da coroa do País. Pede-me, por isso, que não fique mal impressionado com os aspectos menos agradáveis do local, como, por exemplo, o casario a degradar-se, ano após ano.
«– Um olhar mais atento revelar-lhe-á agradáveis surpresas», diz. E convida: «– Não hesite em entrar nos pátios interiores de algumas das casas para apreciar belos pormenores de arte indo-portuguesa ou arcos em ogiva de clara inspiração manuelina».
As missangas que a correnteza arrasta do fundo dos porões dos barcos naufragados até à praia de areia fina são um dos produtos locais que os jovens locais tentam vender aos turistas.
«– Traziam-nas os portugueses da Índia», explica o professor. Originárias de diversas realidades geográficas como o Afeganistão ou a Pérsia, eram mandadas vidrar em Veneza e só depois integradas nos “tesouros” destinados aos chefes locais. Os mercadores tentavam dessa forma impressionar os nativos, testando-os simultaneamente, pois esperavam que em troca lhes disponibilizassem ouro ou qualquer pista que os conduzissem ao apetecido metal precioso.
«– E quando acabará esse enorme manancial de missangas?», questiona o incansável Matteo.
Acabará um dia, como tudo. Por ora, garante Luís Filipe Pereira, há ainda muita missanga. Segundo ele, estarão submersas no canal de Moçambique dezenas e dezenas de embarcações, pois já os textos antigos alertavam para a perigosidade do local, muito semelhante, no seu desenho geográfico, ao canal que separa Malaca da ilha da Samatra. Muitas dessas missangas são directamente desenterradas da areia, por pás e picaretas mais empreendedoras.
«– Se visitar os museus ficará agradavelmente surpreendido», atira Pereira.
A questão da venda das missangas leva-nos forçosamente à questão do saque ao património, triste realidade nos últimos anos. Fala-se, por exemplo, de alguns abusos por parte de uma empresa cubana de arqueologia subaquática sedeada na Ilha, mas o meu interlocutor refuta por completo qualquer suspeita nesse sentido.
Recorramos a um lugar-comum, para mim modus operandis, cartilha de bolso: as pessoas são aquilo que há de mais importante no cardápio disponibilizado pelas viagens. A mesma opinião terá Sara Sousa Teixeira, arquitecta e perita em arte, membro da Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique. Chama-me a atenção para os personagens típicos da Ilha que «com certeza irá encontrar». É o caso do carteiro «que veste sempre de azul ou cor-de-rosa e transporta a correspondência numa mochila quase desfeita, de tão velha».
NORTE-COREANOS A BORDO
Ainda mal-refeito desta ablução de novidades, eis-me de novo no aeroporto de Maputo, com vista para a pista. Ou melhor dizendo, com terraço no primeiro andar onde crianças de olhos iluminados e encarapinhados motivos geométricos a pentear-lhes o cabelo vêm ver os aviões pousar e levantar. O aeroporto do Funchal também é assim, só que ali o Atlântico está mesmo ao pé e há um horizonte montanhoso como barreira natural; enquanto neste paralelo, é o Índico o responsável pelo constante banho ao litoral de perfil suave, e, para o interior, estende-se um imenso país que me é desconhecido.
As aeronaves estão a uns meros passos de distância, não sendo por isso necessário qualquer transporte adicional.
Antes da partida dou-me ao luxo de bebericar uma cerveja “Manica” abrigado por um gigantesco guarda-sol observando o pessoal do abastecimento de comestíveis e bebíveis (sei que é mais fino dizer “catering”, mas recuso fazê-lo) e os da limpeza e manutenção que efectuam as indispensáveis afinações no aparelho Boeing das Linhas Aéreas Moçambicanas com destino a Pemba, com passagem por Nampula. Isto, claro, depois de efectuado o devido registo do voo na companhia dos restantes passageiros: cidadãos moçambicanos, de estirpe africana e indiana, três chineses e um grupo de seis norte-coreanos, dois homens e quatro mulheres, duas delas com um broche com a imagem do querido líder Kim Il Song espetado na camisa à altura do seio esquerdo. Não vale a pena tentar estabelecer contacto visual com estas criaturas, com as quais muito raramente deparamos, e só em locais específicos como a China, Mongólia ou até Macau. Parecem ter sido programados para não mostrar qualquer emoção e evitar o contacto com quem quer que seja oriundo de outra realidade política alheia à nação mais isolada do planeta. Mesmo o norte-coreano que trata dos bilhetes, exprimindo-se num Português sem mácula, limita-se ao essencial. Meia hora mais tarde, já no momento do embarque, consigo arrancar um breve sorriso de uma das moças, o que considero uma verdadeira vitória.
Entre os passageiros, apercebo-me entretanto da presença de outros dois europeus, ambos envolvidos em projectos agrícolas no País. Aproveitam as alargadas férias da Páscoa para desfrutar de uma das mais belas praias do mundo – pelo menos é isso o que se diz a respeito dos areais brancos e do azul cristalino das águas que banham o litoral norte moçambicano. Infelizmente, ficar-me-ei apenas pela ilha que deu o nome ao País, pois o tempo que tenho à minha disposição não dá para mais.
OS ZIGUEZAGUES DO LIMPOPO
Sentado na fila 19 da aeronave da LAM observo através da portinhola circular os meandros do rio Limpopo no seu ziguezaguear, uma vez ultrapassados os refugos suburbanos que adicionam aos dois milhões de habitantes registados oficialmente em Maputo algumas outras centenas de milhar, pois as cidades, para desgraça deste planeta, não param de crescer.
Atrás de mim ouço Mandarim e à minha frente um Português condimentado a caril.
Atingida a velocidade de cruzeiro, e já com o astro rei a preparar a sua despedida, reparo que o miúdo sentado na poltrona oposta olha extasiado – tal como eu – para uma lua cheia que nos surge em forma de um enorme globo laranja, exactamente à altura da luz de presença da asa direita da aeronave. Informa-nos o piloto que lá fora estão 44 graus negativos e em Nampula chove, o que me deixa de novo sob o efeito do síndrome das condições climatéricas adversas sempre que visito qualquer local com o intuito de o fotografar.
Como material de leitura tenho à minha disposição os jornais O País, Savana, Notícias e ainda um exemplar da Índico, revista de bordo das Linhas Aéreas Moçambicanas. Num artigo de opinião de O País, Lázaro Mabunda chama a atenção para «falência da ética e profissionalismo no jornalismo moçambicano». Uns parágrafos adiante, colho uma inspiradora e algo optimista: «Sofremos demasiado pelo pouco que nos falta e alegramo-nos pouco pelo muito que temos».
A hospedeira responsável pelo serviço aos passageiros das últimas filas, perfeito exemplo do secular processo de miscigenação, é frequentemente requisitada pelos rapazes de uma equipa da televisão estatal sentados dois lugares à frente do meu, e que em Nampula farão a cobertura de um desafio de futebol do campeonato nacional, o Moçambola. Já aviaram várias latas de cerveja “2 Mahon” e umas quantas garrafinhas de dose simples de “Black Level”, provavelmente martelado. A cerveja vale trinta meticais, mas o lanche e o chá fornecidos são suficientes para aconchegar o estômago, até porque a viagem não é longa.
Joaquim Magalhães de Castro