De Rosário, o pensador e educador Henry Vivian
Nascido a 18 de Abril de 1809, filho de pai indo-português e mãe inglesa, Henry Louis Vivian Derozio (aglutinação do apelido De Rosário) foi um poeta e pensador racionalista indiano que com apenas dezassete anos assumiu o cargo de professor no Colégio Hindu de Calcutá. Ali ensinaria literatura e história em Inglês de um modo nada convencional, deva dizer-se, pois motivava os alunos a cultivar pensamento próprio e independente. Foi, na verdade, um dos primeiros educadores indianos a disseminar o método de ensino e a ciência ocidentais entre os jovens de Bengala. Na realidade, o didatismo de Derozio não se restringia às salas de aula, pois frequentemente atendia os discentes fora das instalações da faculdade. A sua própria residência era local de debate para todo o tipo de assuntos.
Para Henry não havia tabus. Fosse literatura ou história, filosofia ou ciência. Não admira, pois, que em seu redor depressa se congregasse um grupo de entusiastas que em 1828 o ajudariam a estabelecer um “clube literário e de debate”, conhecido como Associação Académica. Aí, sem as restrições de uma sala de aula e sob a supervisão de Henry, os jovens discutiam livremente os tópicos que mais lhes interessavam. Um sucesso! As reuniões quinzenais realizadas nessa casa ajardinada no bairro de Manicktola contavam sempre com um elevado número de estudantes e até de alguns europeus liberais e filantrópicos.
A eficácia do método de ensino de Derozio incentivaria os alunos a estabelecer organismos semelhantes nos demais bairros de Calcutá, e aquele, na qualidade de presidente da Associação Académica, mantinha contacto com todas as subsidiárias. Munidos de apurada visão crítica, muitos dos seus alunos passaram a expressar as suas dúvidas e insatisfações quanto às condições sócio-económicas daquela época. Influenciava-os a filosofia racionalista de David Hume e de Jeremy Bentham, e também o radicalismo de Thomas Paine.
Admiradores do pensamento de Voltaire, cedo os veremos em denúncia aberta à religião hindu. Tal comportamento faria soar o alarme na sociedade local, tendo sido acusado, o nosso “Henrique De Rosário”, de promover a heresia entre os seus alunos, a maioria proveniente de famílias hindus ortodoxas. O assunto chegou ao conhecimento da administração do Colégio Hindu, constituída por conservadores liderados por um certo Raja Radhakanta Deb, e Derozio foi demitido do cargo. Em Abril de 1831. A medida não teve quaisquer consequências. Derozio passara a ter liberdade para expressar e defender as suas ideias, até porque tivera a sensatez de manter o contacto com os seus alunos.
Bengala vivia momentos tumultuosos desde que em 1828 Rajá Ram Mohan Roy fundara o Brahmo Samaj, um movimento sócio-cultural que, embora pugnasse pelos ideais hindus, negava a idolatria. Henry Derozio iria ter um papel essencial na propagação dessas ideias revolucionárias… Apesar de muito jovem era considerado pelos pares um grande estudioso e pensador. Ciente das suas origens, Derozio envolveu-se activamente na promoção do bem-estar da comunidade euro-asiática e passou a editar um jornal inglês diário, o The East Indian. Incentivava os jovens discípulos hindus a, através do jornalismo, disseminar o seu pensamento radical. E os resultados depressa se tornaram visíveis: em Maio de 1831, Krishna Mohan Banerjee pôs a circular um jornal semanal inglês, o The Enquirer, e no mês seguinte, Dakshinaranjan Mukherjee e Rasik Krishna Mallick, publicavam o periódico bengali Jnananvesan.
Através desses meios de comunicação, aparentemente sob a supervisão de Derozio, os jovens radicais desferiam certeiras farpas na ortodoxia hindu, demonstrando nos seus textos terem também preocupações sociais. Pugnavam pela melhoria da condição das mulheres e dos camponeses e pela liberdade de Imprensa. A actividade daquele que ficaria conhecido como movimento “Young Bengal” gerou uma verdadeira revolução intelectual em Bengala, passando os seus membros, patriotas inflamados, a serem conhecidos como “derozianos”.
Derozio morreu a 26 de Dezembro de 1831, provavelmente vitimado pela cólera, com apenas 22 anos. Os seus restos mortais jazem no cemitério de South Park Street, em Calcutá. A sua prematura partida constituiria um duro golpe para o movimento radical nascente, contudo, o espírito do notável professor perduraria nas gerações seguintes e deixaria um impacto permanente na comunidade hindu bengali. Em 1838, membros do “Young Bengal” constituíram uma segunda instituição denominada “Sociedade para a Aquisição de Conhecimentos Gerais”, cujo principal objectivo “era inteirarem-se das reais condições do país”.
Olhemos agora com mais detalhe para o percurso de vida do nosso personagem. Henry cresceu com os irmãos no bairro Entally-Padmapukur, em Calcutá, na companhia do pai, Francis Derozio, amanuense cristão indo-português, e a mãe, Sophia Johnson Derozio, expatriada inglesa. Segundo estudos de Roy Dean Wright, professor de sociologia da Universidade de Drake, Derozio terá crescido “num ambiente de repressão económica e social”, que tipificava as condições de vida da dita comunidade anglo-indiana, embora o pai trabalhasse na casa mercantil J. Scott and Company, em Calcutá, e possuísse casa própria, “de bom tamanho, e educasse os filhos nalgumas das melhores escolas que as crianças anglo-indianas estavam autorizadas a frequentar”. Eis-nos aqui perante mais um caso de alteração de apelido, De Rosário dá origem a Derozio.
Embora Portugal, como potência colonial, dominasse sobretudo a costa do Malabar, também no Nordeste da Índia era assinalável o seu peso sócio-económico. Um significativo número de pessoas e de eventos tiveram forte impacto na vida de Henry. O pai, pessoa respeitado na comunidade, casara três vezes. Henry era filho da primeira esposa e tinha dois irmãos, Fran e Claudius, e uma irmã, Amelia. “Pouco se sabe acerca da mãe ou dos irmãos”, diz-nos Roy Dean Wright, “além daquilo que Edwards escreveu sobre Fran ‘que parece ter levado uma vida sem sentido e que, finalmente, descambou para o mal’. Sobre Claudius, observou que pouco se sabia além do facto de se ter mudado para a Escócia para receber educação suplementar ‘e daí ter regressado com um acentuado sotaque escocês que manteve durante muitos dias’. Edwards comentou que a sua irmã se mudara para Serampore, onde viria a casar. Além disso, o único outro parente mencionado é uma tia de Derozio pelo lado paterno que se casou com um ‘cavalheiro’ europeu plantador de anil em Bhaugulpore”.
A escolaridade na Academia Dhurramtallah de David Drummond, dos seis aos catorze anos, imprimiriam vincado cunho no carácter de Derozio, pois nesse estabelecimento de ensino – projecto do livre pensador que lhe legou o nome – conviviam crianças indianas, euro-asiáticas e europeias de diferentes classes sociais, algo de inédito para a época. O cepticismo religioso na fase final da vida de Derozio costuma ser atribuído à influência de David Drummond…
Breves notícias no The Gazette of India e no Calcutta Journal constatam a excelência académica do nosso Henry Derozio (obteve vários prémios) e um bom desempenho nas peças teatrais estudantis. Não obstante, e como era habitual, deixou a escola aos catorze anos para ir trabalhar, inicialmente no escritório do pai, em Calcutá, e depois na fábrica de índigo da tia de Bhaugulpore. Foi aí que, inspirado pela beleza cénica das margens do rio Ganges e seus arredores, começou a escrever poesia, submetida posteriormente ao Indian Daily. Prosperou a sua carreira literária marcada pela publicação de poemas em vários jornais e revistas, em 1825, alguns com boa crítica na imprensa de Londres. Em 1827, tinha Derozio dezoito anos, o editor John Grant desafiou-o a publicar um livro e convidou-o a regressar a Calcutá, onde Derozio se tornaria editor assistente de Grant, além de publicar regularmente em vários outros periódicos, mormente o Calcutta Gazette.
Joaquim Magalhães de Castro