Memória Portuguesa no Nordeste da Índia e no Bangladesh – 3

Os testemunhos que nos trazem os jornais

Como foi salientado nas crónicas precedentes, os elementos da comunidade católica de Bondashil, no Golfo de Bengala, não vêem qualquer problema em participar nas festividades hindus, nomeadamente o Durga Puja – evento anual que reverência a deusa Durga – e logo a seguir ir à igreja assistir à liturgia diária. Prova dessa inclusão no tecido social local é o facto de no estabelecimento escolar que administram acolherem crianças das demais confissões religiosas. «O próximo Durga Puja será um momento de celebração para nós», garante ao jornalista do Deccan Heralda senhora Triza (Teresa) Fernandez. Com 95 anos de idade é certamente a pessoa mais idosa da comunidade luso-descendente. Apesar de acamada, Triza mostra vontade de voltar a abraçar a popular deusa do panteão hindu, cumprindo assim uma tradição familiar perpetuada há mais de três gerações. É durante o Durga Puja – e não no Natal – que as crianças católicas pedem e recebem presentes. «Nessa altura informamos os amigos hindus acerca daquilo que gostaríamos de receber dos nossos familiares», acrescenta a adolescente Richa Fernandez, neta da senhora Triza.

O pároco local, Hubert D’Almeyda, esse não tem dúvidas quanto ao grau de devoção dos seus paroquianos, apesar de «adorarem o Senhor» e em simultâneo desfrutarem de todos os festivais locais. «É positivo», diz ele, «evita muitos problemas». De resto, também os hindus participam activamente nas cerimónias e festividades católicas. «E fazem-no com a maior das devoções», lembra o padre Almeyda. Sobrenomes como o seu, ou Fernandez, Rodrigues, D’Souza, D’Silva, Dias, e também Panero, Gonzales e Frank, são claras reminiscências dos portugueses de outrora. E se é verdade – como já aqui afirmámos – que algumas dessas famílias aparentemente ignoram o seu passado, não falta, em contrapartida, quem exiba com orgulho o “pedigree” firangi. É o caso de Philip Fernandez e de Placido Anthony. Apesar de bem adaptados têm o maior orgulho em serem descendentes dos mercenários portugueses. Esforçam-se por preservar os hábitos e costumes transmitidos pelos seus antepassados, têm igreja própria – das mais antigas da região – e uma escola. E, o mais importante: permanecem unidos. Têm cidadania indiana e não os liga a Portugal qualquer vínculo familiar; e contudo… «Sinto um forte desejo de visitar a minha terra natal [Portugal], ver como viviam os meus antepassados, imaginar como teria sido a minha vida se estivesse lá», confessa, nostálgico, Placido Anthony, e revela: «Às vezes sinto uma certa crise de identidade».

Hubert Dias, funcionário dos correios em Badarpur, é mais pragmático: «Este é o lugar onde o meu pai, o meu avô e o meu bisavô nasceram. Daqui sou originário». À excepção da época de Natal e da Páscoa – quando se prepara o típico vindaloo (prato derivado do nosso “vinha de alhos”) – não pontua a comida portuguesa à mesa dos agregados familiares católicos. No léxico, porém, sobrevivem vocábulos lusos e no decorrer das orações e interacções com o pároco escuta-se, aqui e ali, resquícios de Latim. Valeria Frank Sengupta, cujo nome de solteira era Valeria Frank, trabalha na empresa Hindustan Paper Corporation, onde conheceu Ashim Gupta, um bengali hindu com quem contraiu matrimónio. «Não sinto que haja qualquer barreira cultural entre mim e o meu marido. Não tenho qualquer problema em cumprir os rituais num templo hindu nem o meu marido está a contragosto quando se senta a meu lado na missa dominical. Na verdade, nada disto é novidade para nós, pois crescemos nesta amálgama cultural», conclui Valeria.

Bondashil não viu grande desenvolvimento ao longo dos anos – muitas estruturas correm o risco de desmoronamento devido à falta de manutenção – e escasseiam as oportunidades de emprego. O jovem Joseph Anthony sugere um caminho: «A nossa aldeia tem potencialidades como local de turismo histórico. Poderia ser visitada no futuro por estrangeiros, sobretudo de Portugal. Parece no entanto que essa singularidade da nossa aldeia nada diz às pessoas que estão no poder».

Também já aqui mencionámos a pequena comunidade cristã de origem portuguesa de Mariamnagar, nos arredores de Agartala, capital do Estado de Tripura, resultante de um grupo de soldados portugueses sedeados em Chittagong e Noakhali (actual Bangladesh) que ali desembarcou na década de 1530 para servir o monarca local Indira Manikya, que assim resistia a uma tentativa de usurpação do poder por parte de inimigos fidalgais. «Quatro deles ficariam muito próximos da família real, constituindo uma espécie de guarda pretoriana», afirma ao Hindustan TimesJaratt Lagardo, 72 anos, destacado membro da comunidade luso-descendente. O rei atribuiu-lhes terra na área de Khayerpur, agora conhecido como Mariamnagar, em homenagem a Mãe Maria. Vivem aí ainda hoje cerca de sessenta famílias de origem portuguesa, que comunicam apenas no dialecto bengali local. O facto de não terem conseguido preservar a sua identidade cultural merece o seguinte comentário de Lagardo: «É lamentável que tenhamos esquecido a nossa língua e a nossa cultura». Ele próprio, as únicas palavras em Português que recorda são as de uma oração muito comum em Mariamnagar há cerca de cinquenta anos. «Nessa época eram ministradas aulas de língua portuguesa no adro da igreja», lembra. O panorama começou a mudar há cerca de vinte anos, quando o Bengali substituiu o idioma de Camões como língua de culto durante a missa e as novenas.

Policup Marcher, outro luso-descendente, recorda as estórias do avô Tazu Marcher acerca dos portugueses que de marinheiros, soldados e comerciantes se transformariam em agricultores e criadores de gado. Como muitos outros idosos da sua comunidade, Marcher, de setenta anos, em vão tem procurado nas bibliotecas de Agartala livros em Português. «Somos a décima oitava geração da nossa família e até à décima quinta o uso do Português era habitual», afirma. E sublinha: «A par com a língua perderam-se as receitas culinárias tradicionais. Em casa raramente cozinhamos o vindaloo, pois os mais jovens não o apreciam. Preferem o frango feito à maneira bengali». Tal como em Bondashil, também aqui as católicas vestem o sari, colocam vermelhão na testa e anualmente participam no Durga Puja. Os apelidos são, talvez, o único lembrete da sua “distinta linhagem”.

O padre Matthew Ullattil, missionário da Congregação da Santa Cruz, natural do Kerala, pároco de Mariamnagar durante nove anos, elogia a comunidade por lograr manter a sua fé durante tanto tempo, isto apesar de estar rodeada de hindus e muçulmanos. «Durante mais de quatro séculos foram os únicos católicos em Tripura», refere o sacerdote ao repórter da UCA News. Lembra ainda que os portugueses casaram-se sobretudo com mulheres hindus bengalis. A persistência deste núcleo católico ao longo dos séculos sem a presença de qualquer padre é um mistério. Assim isolados, o seu enfraquecimento foi inevitável. Apenas a fé se manteve intacta, «graças à recitação do Rosário em família», sublinha Jaratt Lagardo. Na realidade, a sobrevivência desta comunidade deve muito à tolerância dos hindus e muçulmanos seu vizinhos.

Boniface Lagardo (apesar do apelido, sem qualquer parentesco com Jaratt Lagardo), recorda que embora os católicos de Mariamnagar tenham assimilado completamente a cultura local, os bengalis não os consideram como seus. Mas nada disso os afecta. «Somos descendentes de mercenários portugueses e herdámos a sua coragem e valentia. Não tenho medo de ninguém, excepto de Deus», confessa à UCA Newseste professor de 58 anos.

Policup Marcher, 52, cujo avô doou terras e o altar para a igreja de Mariamnagar, disse ao UCA Newsque a comunidade diminuiu com o passar dos anos devido à «febre negra» e a outras doenças. Segundo ele, os seus antepassados «tiveram que lutar contra as forças adversas da natureza para se estabelecerem no lugar que o rei lhes concedeu», tendo muitos deles optado por regressar a Noakhali e a Chittagong. Charles, o filho de vinte anos, queixa-se da falta de emprego, apesar de ter concluído um curso de electrónica e de provavelmente ter de se casar com uma hindu, pois «há cada vez menos raparigas católicas em Mariamnagar». Teve melhor sorte o amigo Ricky D’Souza, de 21 anos, pois encontrou emprego numa operadora de telecomunicações, “fugindo” assim à vida de camponês. «O meu diploma em electrónica foi fundamental para conseguir este emprego», acentuou.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *