Filhos dos soldados da fortuna.
Os portugueses, como é sabido, comportavam-se de forma distinta dos restantes europeus que rumavam ao Oriente. Como lembra, e bem, o académico indiano David R. Syiemlieh, “eles não eram meros viajantes ou comerciantes. Muitos dos que partiam para o Oriente, aí permaneciam por longos períodos; alguns, o resto da vida”. Dado que só raras vezes se faziam acompanhar pelas mulheres, a maioria dos que permaneceram no subcontinente casaram-se com indianas. E elas, juntamente com as crianças entretanto geradas, invariavelmente adoptaram a crença dos seus maridos. “Do século XVI ao século XVIII, essa comunidade cresceria em número e importância, como aconteceu no sul e no oeste da Índia; ou cingir-se-ia a pequenos grupos, como em Bengala, sobretudo nas zonas costeiras mas também no interior montanhoso”. É esse aspecto particular de crescimento da população ao longo da Expansão Ultramarina Portuguesa que surge como padrão diferenciador em relação às restantes potências coloniais europeias, como a França, a Inglaterra, a Holanda, e outras. Com o passar dos anos, os territórios anteriormente sob administração do Estado de Índia assistirão a um influxo considerável de pessoas de extracção portuguesa, que, pese embora o progressivo descalabro económico-político português, tiveram um enorme impacto social nas regiões onde se encontravam implantadas.
Entre as várias possessões portuguesas existentes no nordeste da Índia, três se destacam quanto à sua localização, finalidade, tamanho, e possível extinção ou continuidade. De uma delas, localizada em Rangamati, na fronteira bengalesa do Império Mogol em Goalpara, já aqui falámos na série de crónicas “Bengala e o Reino do Dragão”. Debruçar-nos-emos, desta feita, acerca da comunidade católica luso-descendente que habita o bairro de Bondashil (Badarpur) junto ao rio Barak, na região de Cachar; mas também a de Mariamnagar, perto de Agartala, capital da província de Tripura. Ambas, tal (como a de Rangamati) tiveram a sua origem em colónias de mercenários portugueses. Os descendentes dos primeiros colonos eram conhecidos, entre os portugueses, como “Filhos de Indos”, e, entre os indianos, como firingis. Nas gerações mais recentes de firingis, muitos dos seus membros são gente de extracção local convertida ao Cristianismo. Os textos desta e da próxima semana baseiam-se inteiramente no trabalho (o único do género que conheço) levado a cabo pelo professor David R. Syiemlieh, autor de vários livros e artigos sobre a história do nordeste da Índia.
A região de Cachar integrava o reino de Dimasa Kachari, que abrangia ainda os distritos adjacentes de Hailakandi e Karimganj. Teve o dito domínio, no seu período áureo, Khaspur como capital, constituindo o palácio em ruínas de Cachar memória disso mesmo. Governado por dois rajás – cada um deles com áreas de controlo definidas – Cachar acabaria por sucumbir vítima do desenho imperialista dos britânicos. Administrava a zona montanhosa (porção norte de Cachar) o rajá Tularam, mas após a sua morte, em 1854, esses territórios seriam anexados pelos britânicos. Já as planícies (porção sul de Cachar), governava-as Govinda Chandra Hasnu. Mas também neste caso, logo após o assassinato deste príncipe, em 1832, por Gambhir Singh, rei de Manipur, os britânicos trataram de anexar essas terras, juntando-as aos restantes domínios que possuíam na Índia. Ora, precisamente aqui, onde o reino de Bengala encontra o reino de Cachar – hoje região fronteiriça indo-bangladeshi – havia um ajuntamento de luso-descendentes. Mais exactamente na aldeia de Bondashil – bond (próximo) e shil (pedra) –, situada na margem sul do rio Barak, apenas a uma milha da cidade histórica de Badarpur, onde perdura ainda hoje um forte de construção mogol. “À semelhança de Rangamati e Hossumpur, também a origem das gentes de Bondashil é um mistério”, lembra David R. Syiemlieh. Nada se sabe ao certo. De onde vieram, de que maneira o fizeram e por que razão se fixaram nas terras de Cachar. Entre os residentes prevalece a ideia de que os seus antepassados “haviam anteriormente servido o principado de Sardhana, no norte da Índia, sob o comando do aventureiro alemão Walter Reinhardt Sombre e a sua encantadora esposa Begum Sumru”, mais tarde convertida ao Catolicismo, tendo adoptado o nome de Joanna Nobilis. “Esse principado colocara ao dispor do imperador mogol um exército de 5000 homens, mas quando o império entrou em colapso, muitos deixaram aquelas paragens para ir procurar trabalho noutros locais, nomeadamente em Sylhet e nos domínios, ali próximos, do rajá de Cachar”.
Nos anos 1823 e 1824, os birmaneses tinham entrado em Assam e planeavam uma ambiciosa campanha militar de forma a expandir os seus domínios em Bengala, através da ocupação preliminar do reino de Cachar. Aterrorizado, o rajá Govinda Chandra Hasnu pediu ajuda aos ingleses da Companhia das Índias Orientais, que lhe enviariam alguns dos soldados de origem portuguesa que estavam destacados em Sylhet. Entrincheirados em Badarpur, onde havia um pequeno forte, os mercenários conseguiram conter o avanço dos birmaneses. Afastada a ameaça, e de novo no conforto do poder, o rajá Govinda, num acto de agradecimento, recompensaria esses cristãos dando-lhes terra em Baniyachong, nas imediações de Sylhet. “Alguns desses firingis de bom grado fixaram residência nesse novo local; porém, a maior parte optaria por permanecer em Bondashil, conferindo ao local a sua distintiva característica”, recorda o professor.
O registo mais antigo da visita de um padre a Bondashil é a do reverendo Freycinon e data de 1844, que a fez no âmbito de uma visita alargada às comunidades cristãs das vizinhanças de Sylhet. Depois disso, e ao longo de muitos anos, a comunidade firingi não contou com os serviços de qualquer padre. O panorama mudaria com a decisão da Congregação de Santa Cruz – instituição católica de direito pontifico voltada para o ensino – de incluir Sylhet e Cachar na órbita da sua jurisdição eclesiástica. Em 1860, o padre Benoît Adolphe Mercier, “o primeiro prelado da dita congregação a ser ordenado em Daca”, fez uma série de visitas a Bondashil, tendo ali chegado por via fluvial, como era costume. Continuando a montante do Bramaputra, Mercier daria continuidade à sua missão pastoral com visitas a Cherapunji e Guwahati e, após uma travessia de montanha, a Shillong. No ano seguinte, Mercier acompanharia o bispo Pierre Dufal numa visita a Bondashil e a Sylhet, e aí admitiriam novos convertidos à fé católica. Em 1864 há notícia de nova presença de Mercier em Bondashil, pois aí oficiaria o casamento entre os firingis John Anton (Antão?) e Maria Filghera (Figueira?), cerimónia que teve lugar no dia 23 de Julho desse mesmo ano. O padre francês fez o circuito uma vez mais em 1868, com os seus confrades Aimée Marie Fourmond e Bonnet, continuando as visitas pastorais entre 1868 e 1869. Em 1870 o padre Fourmond fixaria residência permanente em Bondashil. Recorda David R. Syiemlieh que “os padres da Congregação da Santa Cruz viajavam por aquela região na esperança de que o Vaticano lhes concedesse a missão região de Assam e as colinas circunvizinhas como recompensa pelo seu esforço anterior no leste de Bengala”.
As mulheres católicas que hoje habitam as imediações da igreja de Badarpur (o correspondente a umas quarenta famílias), aparentemente em nada dão a entender as suas origens lusitanas. Tal como as vizinhas hindus, pintam de vermelhão a testa, ao pescoço ostentam um colar preto frisado e em torno dos pulsos tilintam fieiras de pulseiras, celebrando assim a cultura e a tradição bengalesa que ao longo dos tempos foram absorvendo. Também o idioma com que comunicam falha em dar-nos qualquer sinal de lusitanidade. Aqui e ali, talvez, um ou outro vocábulo possa soar familiar. Resta a crença e o apelido (neste caso, nem sempre), sinais denunciadores de uma raiz comum. “Tudo fazemos para nos integrarmos na sociedade em que vivemos. Adaptamo-nos à sua forma de estar e ser para que possamos ser aceites sem problemas”, diz ao repórter de um jornal local, o Deccan Herald, a senhora Roma Maria Frank, de 73 anos. “Já não nos preocupamos se somos considerados portugueses ou não. Na realidade, ficamos felizes quando nos identificam como bengalis. É claro que vamos à igreja todos os Domingos, mas ao mesmo tempo também participamos nos festivais de outras comunidades”, acrescenta.
Joaquim Magalhães de Castro