Um maremoto devastador
As notícias do terrível tsunami de 26 de Dezembro 2004 chegaram no mesmo formato que a tragédia em si. Numa torrente. O cômputo de vítimas que inicialmente atingia as centenas, ao fim de uma semana era já da ordem das centenas de milhares.
No Norte da ilha de Samatra, arquipélago da Indonésia, a devastação teria de ser necessariamente massiva, já que o epicentro do sismo se situara a centena e meia de quilómetros de uma orla costeira praticamente desconhecida dos ocidentais. Uma costa fustigada por um conflito já com três décadas entre as forças governamentais e a Frente Nacional de Libertação do Achém, mais conhecida pelo acrónimo GAM, cujo líder e fundador, Tengku Hasan Muhammad di Tiro, fora destacado defensor do ideal nacionalista e embaixador da Indonésia na ONU em 1950.
Por razões óbvias, a região não constava dos pacotes promocionais das agências de viagens, malgrado as praias selvagens de areais brancos e águas cristalinas pontuadas por pitorescas aldeias piscatórias de gente hospitaleira.
O sub-distrito de Lamno viu a metade das suas 48 aldeias serem varridas pela força das vagas. Entre elas, Kuala Daya, Ujon Meuloh, Lamso e Lambesu, onde, desde finais do século XVI, vivia uma comunidade de luso-descendentes, os ditos “portugueses de Lamno”. Distinguia-os do resto da população um modo de vida inter-comunitário e traços fisionómicos caucasianos: tinham o cabelo e os olhos claros, amiúde verdes, ocasionalmente azuis. Viviam da agricultura e da pesca e professavam o Islamismo, à semelhança dos restantes achéns.
Importa realçar que o destino dessa comunidade única – «um perfeito exemplo de miscigenação assimilada» – suscitou muito mais interesse na Indonésia do que em Portugal. Vários órgãos da comunicação social do arquipélago lhe deram o devido destaque, assumindo aqui a revista semanal Tempo um papel de relevo, visto que consagrou ao tema uma reportagem de nove páginas. O assunto continuaria a despertar curiosidade durante alguns meses, como o confirmava a publicação de artigos nos jornais Waspada Medan e Jakarta Post. Este último, em Outubro de 2005, publicara um texto intitulado “The Last Portuguese-Acehnese of Lamno”. Em Hong Kong, o consagrado South China Morning Post, na edição de 4 de Março de 2005, incluíra nas suas páginas uma peça da France Press denominada “Acehnese lament the disappearence of their blue-eyed heritage”. A dada altura, feita a devida contextualização histórica, o autor do artigo escrevia o seguinte: «Na escola primária de Meutara, duas ou três crianças parecem mais europeias do que indonésias. O cabelo louro de Rauzatul Jannah, demasiado novo para frequentar as aulas, faz com que pudesse passar por europeu». Estes e outros testemunhos alertaram desde logo para a possibilidade da existência de sobreviventes dessa comunidade, que inicialmente fora dada como extinta.
Em Portugal, exceptuando uma ou outra menção, do tipo fait divers e nunca como reportagem de fundo, o assunto passou praticamente despercebido junto do grande público. Ora, essa falta de interesse estava bem expressa no episódio do programa da RTP “Príncipes do Nada” dedicado ao apoio humanitário português às vítimas. Catarina Furtado limitou-se a uma lacónica observação, sem ter tido a preocupação de contactar com um desses sobreviventes. Eu próprio, quando uns dias após o tsunami abordei algumas publicações sugerindo-lhes o meu testemunho escrito e fotográfico, uma vez que convivera de perto com essa comunidade, ano e meio antes da tragédia, fui recebido com frieza e velado desinteresse. Atitude que nem me chegou a surpreender, pois lendário é o desprezo a que Portugal vota temáticas como esta.
No rescaldo da calamidade, o embaixador português em Jacarta, José Santos Braga, aquando de uma deslocação a Achém para contactos com as autoridades locais, manifestara a possibilidade de as entidades portuguesas poderem, de algum modo, participar na reconstrução de Lamno. Seria um «processo moroso, que exige um plano geral de reordenamento territorial, o que implica a relocalização e o redimensionamento dos antigos aglomerados populacionais». Mas, para isso, havia que conciliar a vontade da população e das autoridades locais com «a vontade dos portugueses em se envolverem numa acção de solidariedade». Claro que para a haver era preciso que os portugueses soubessem da existência dessa comunidade, ou melhor, dos sobreviventes dessa comunidade. O que era pouco provável, pois, exceptuando uns quantos despachos da LUSA e umas quantas menções num ou noutro blogue, os meios de comunicação nacionais praticamente ignoraram ao assunto. Em contrapartida, o miúdo encontrado na praia com uma camisola da selecção nacional recebeu toda a atenção, tendo sido exibido pelo País qual um animal de estimação.
Santos Braga, que se dizia «à disposição de todos» os que demonstrassem interesse em «fazer renascer a comunidade dos portugueses de Lamno», apontou até sugestões: «Se a ajuda se concretizar, julgo que poderia abranger, por exemplo, um serviço público – escola, centro de saúde, centro de reuniões da comunidade, infra-estrutura desportiva. Também me parece que poderia ser útil o apoio na área da formação profissional, continuação de estudos e retoma da actividade piscatória». Lamentavelmente, o desejo do diplomata parece ter caído em saco roto, e, até hoje, nada foi feito nesse sentido.
Entre as centenas que perderam a vida no tsunami de 2004, constava T. R. Adam, um nativo de Lamno que ano e meio antes me indicara o nome de pessoas que me poderiam ajudar nas minhas pesquisas. A investigação mostrar-se-ia difícil de concretizar, pelo que decidira guardar a tarefa para uma outra viagem ao Achém. Infelizmente, esta só se realizaria uma vez consumada a tragédia. Limito-me agora, através de fotos e recordações escritas, a prestar tributo à memória dos membros dessa comunidade. Uma comunidade que me demonstrou a sua hospitalidade, quebrada a inicial barreira da desconfiança, naturalíssima numa zona de conflito. Há que considerar que muitos deles eram simpatizantes da causa independentista, já que achéns de corpo e alma se assumiam.
Joaquim Magalhães de Castro