Mata-Birus da Indonésia

Os efeitos do maremoto

O maremoto não só alterara o perfil topográfico da região, mas também toda a fauna e a flora costeira. O impacto fora de tal ordem que os cientistas viriam a descobrir uma zona sem qualquer tipo de vida junto ao epicentro do sismo responsável pelo tsunami.

Os solos, inundados de água salgada e pejados de árvores caídas e destroços das habitações, voltavam a ser cultivados e produziam de novo colheitas de arroz, feijão e soja, permitindo que as populações sobreviventes tivessem uma alternativa à prática do abate ilegal de árvores, que tinha sido, até então, uma das formas de subsistência.

Na província do Achém operavam dezenas de agências humanitárias, muitas destinadas a permanecer no terreno ainda alguns anos. As de maior dimensão concentravam a atenção em projectos sanitários, na habitação, na recuperação de estradas e de pontes e no abastecimento de água potável.

Em Lamno, a MSF (Médicos Sem Fronteiras) tinham montado um centro cirúrgico numa clínica de saúde regional, onde eram tratados, sobretudo, pacientes com tuberculose. Operavam ainda na região, entre outras, a Oxfam, a Oikos, a AMI, e o Serviço de Refugiados dos Jesuítas. Para os próximos anos esperava-se que a vida regressasse à normalidade possível, que os adultos voltassem aos campos e aos mercados e as crianças à escola. Mas, para isso, era fundamental que as estradas e as pontes reassumissem os propósitos para que tinham sido concebidas.

Ironia do destino. Os achéns, nossos arqui-rivais em busca do domínio do Índico no século XVI, eram agora assistidos por equipas médicas portuguesas num hospital de campanha com víveres e medicamentos vindos de Portugal.

Das casas e edifícios públicos de Lamno restavam apenas as fundações de cimento. Ironicamente, a única estrutura que resistiu foi uma escola queimada em cujas paredes era ainda visível um grafito apelando ao referendo na província: “Referendum. Yes! Aceh, Merdeka” (Referendo. Sim! Liberdade para Achém).

Quem diria que há vinte e quatro meses habitavam naquela jurisdição territorial trezentas e vinte mil almas.

Logo à chegada a essa Lamno em plena pujança, em 2002, apercebi-me dos traços europeus em muitos dos seus habitantes, que inteirados da minha nacionalidade redobravam a sua simpatia, exclamando um atónito: «Ah, Portugal!». O problema estava na impossibilidade de estabelecer um diálogo profícuo, já que apenas dois dos residentes falavam Inglês. Num instante me puseram em contacto com um deles, o professor As Rasman, de 73 anos.

«– Há muito do vosso sangue por aqui. É bom, essas coisas das misturas e da assimilação», argumentava ele, manifestando-se, logo ali, convicto anti-separatista.

Para ele, o separatismo na província do Achém só serviria para enfraquecer essa assimilação que os portugueses tão exemplarmente conseguiram.

O conflito do exército com os GAM, grupo independentista de inspiração islâmica, activo no Norte de Samatra desde a década de 1990, recrudescera de maneira significativa desde a queda de Suharto, com um número crescente de vítimas, não só entre militares e guerrilheiros, mas sobretudo entre a população civil.

«– Se os rebeldes lograrem os seus objectivos, não teremos mais segurança, estaremos todos sujeitos à lei do mais forte».

Quando perguntei se as mulheres também participavam na revolta armada, o velho As Rasman riu-se e não me respondeu, limitando-se a apontar para o soalho da pequena barraca, onde vendia tabaco, doces e bananas, e afirmando em jeito profético:

«– O inimigo dos GAM está sob os seus próprios pés».

Para ele, o soalho era uma metáfora da morte; a mortalha do adversário.

«– Não são fortes e falta-lhes preparação militar. Dou-lhes apenas mais um ano de existência. Serão eliminados».

Reformado da Marinha, As Rasman falava com conhecimento de causa, pois lutara contra o poder colonial holandês, logo a seguir à Segunda Grande Guerra.

«– Se houvesse um referendo, as pessoas votariam pela integração».

A primeira coisa que avistei do meu quarto na losmen Singa Han, a única hospedaria de Lamno, que aconselhava os hóspedes a “pensar globalmente e a vestir tradicionalmente”, foram as letras garrafais, brancas, “Referendum.Yes!”, pintadas no telhado de zinco de um barracão com as paredes esburacadas e pejadas de outras frases apelando ao separatismo, entretanto borratadas com tinta castanha. Sinais de um tempo mais conturbado, quando a aldeia, sob o controlo dos guerrilheiros, estivera a ferro e fogo. E sobrevivera.

Não creio que o empregado da pensão apoiasse a integração do Aceh na mãe Indonésia, pois pediu-me que fotografasse todos esses protestos e os mostrasse depois no meu país. Tão-pouco me parecia integracionista o sorridente homem com que me deparei à saída do posto dos correios. Nativo de Banda Aceh, Raffil dizia-se professor e andava a «incentivar as pessoas a acreditarem e investirem nas (suas) capacidades».

«– Trabalho para o povo», dizia, enquanto retirava de sacos de plástico molhos de papéis com listas com nomes de pessoas. Depois, a meia-voz, acrescentara:

«– Aceh está ser mal interpretada. Deve ser vista como uma irmã e não como uma inimiga».

Aquela era uma achega ao Governo, com toda a certeza, embora Raffil não o admitisse.

«– O que se passa não é culpa do Governo, mas sim de certos indivíduos».

Já para o ex-militar As Rasman não sobravam dúvidas:

«– Isso do GAM é mero banditismo, influência estrangeira».

Que pelos vistos tinha rosto.

«– É obra do Khadafi».

E de Bin Laden?

«– Sim, e do Bin Laden».

Lançada a bojarda, perguntara:

«– E o seu país, Portugal, apoia os GAM?»

Sem me dar tempo para responder, lembrara que a Alemanha e a América, «que é um pouquinho má», não apoiavam. Depois, ciente de que «Portugal é um país amante da paz», acabara por desejar-me «sucesso nas minhas investigações».

Joaquim Magalhães de Castro

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