Mata-Birus da Indonésia

De Medan a Banda Aceh

Pouco mais de seiscentos quilómetros separam as cidades de Medan e Banda Aceh; no entanto, era bastante arriscado fazer o trajecto por terra. Circulavam então notícias de turistas assaltados e despojados do seu dinheiro e de outros valores, apontando-se o dedo acusador tanto à guerrilha dos GAM quanto ao exército indonésio. Ambos, com uma assustadora assiduidade, obrigavam os veículos a parar, sobretudo durante a noite, revistando os passageiros e, não raras vezes, subtraindo-lhes os seus haveres. Por essa razão, optei pela via marítima.

À saída de Belawan, porto de Medan, eram muitos os barcos de pesca que partiam para a faina. Atrevidos e rápidos, enfrentavam a ondulação provocada pela espécie de cargueiro onde viajava e que tinha classe económica e executiva, ambas infestadas de baratas. O convés e os compartimentos do decrépito Pangangro – assim se chamava o navio que ligava Jacarta a Samatra – não eram varridos há séculos, e o pessoal de bordo certamente sonhava trabalhar em paquetes de maior envergadura e longa carreira, já que se ganhava mais, sendo menor o aborrecimento.

Fiquei impressionado com a quantidade de coisas que vi flutuar nas águas de azul profundo dos estreitos de Malaca. Ramos de árvores, folhas, cocos podres, mas também muito, muito lixo. Aquele que o barco produzia, por exemplo, era reunido em sacos de plástico pretos e despejado no alto-mar, apesar de existirem caixotes para o efeito ao longo da amurada. Não admira, pois, que as praias estejam pejadas de porcaria.

Mas, afinal, o que é um saco de lixo quando comparado com os bidões contendo material radioactivo que secretamente são lançados para o leito dos oceanos?

À espera do Pangangro no porto de Malahyati estavam militares de AK-47 e M-16 a tiracolo, uns fardados, outros à civil, num cais apinhado de gente. Seriam eles quem preencheria os lugares vagos para a viagem de retorno a Jacarta. Entre os restantes candidatos, destacavam-se alguns mochileiros acabados de chegar da ilha de Weh, centro de mergulho e observação de corais e outra vida marinha. Pulau Weh continuava a ser o único local turístico do Achém, apesar de toda a província estar pejada de praias e montanhas paradisíacas.

Mal o navio atracou, três ou quatro militares entraram para uma rápida vistoria. Lá fora, aguardavam os camaradas, alguns de partida, ao fim de seis meses de comissão de serviço numa muito conturbada província. Para os camiões verde azeitona, que os tinham trazido da cidade, entravam agora os homens, acompanhados de mulheres e crianças, com quem viajara sem me dar conta de que eram militares. Acontecia ali, afinal, um render de guarda, com algum aparato e muito armamento.

Regressaria a esse mesmo porto dois anos após o devastador maremoto e, apesar do cessar-fogo, Jacarta insistia em manter militares na região. O panorama era em tudo similar.

Uma das passageiras do furgão que me transportou até Banda Aceh, uma jovem de véu posto, como mandava a tradição, não receava sorrir e até estabeleceu diálogo com os únicos dois estrangeiros ali presentes – eu e um padre italiano, – algo impensável em certos países islâmicos liberais, como o Omã ou os Emirados Árabes Unidos. Lembrei-me logo da mulher almirante e das muitas guerrilheiras, que num passado ainda muito recente integravam as fileiras dos independentistas.

«– Os GAM nunca tiveram grande credibilidade. A população nunca simpatizou muito com eles», afirmava Ferdinando, um franciscano piemontês que vivia há duas décadas em Banda Aceh. «– Criaram permanente destabilização na província e, sobretudo, extorquiram muito dinheiro da população local para custear as suas actividades».

A afirmação vinha, de certo modo, contradizer as alegações de que o grupo islamita era financiado pelos banqueiros da Al-Qaeda a partir da Malásia. O comércio de armas continuava a ser uma prática comum nos perigosos estreitos de Malaca, onde ao longo da história naufragaram embarcações das mais diversas proveniências. Tratava-se sobretudo de material em segunda mão, comprado, directamente ou por vias travessas, aos exércitos da Tailândia, China e do Camboja.

Tão-pouco, como se deve imaginar, a tropa indonésia cativava a simpatia dos locais. Os seus métodos pareciam ser ainda menos recomendáveis. Não só recorria à extorsão, como aplicava medidas coercivas e retaliativas, no mínimo estranhas.

«– Já reparou em todas essas casas queimadas?», perguntou o franciscano num momento em que o furgão redobrava a velocidade, como que afugentado pela desolação lá fora. «– É tudo obra do exército. Se de alguma dessas casas partisse um tiro, os militares queimavam-na, essa e todas em redor».

Na óptica do poder indonésio, não só era culpado quem dava abrigo aos GAM como os vizinhos que tinham obrigação de saber quem vivia nas redondezas. Essa era a lógica. E o facto de muitas das casas queimadas serem escolas deixava o frade transalpino perplexo e triste.

Quanto à questão da segurança na rede viária, «os estrangeiros nunca constituíram um alvo». Ele próprio fora várias vezes interpelado, tanto pelo exército quanto pela guerrilha.

«– Pediam-me apenas os documentos; mera rotina», dizia.

Joaquim Magalhães de Castro

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