Mata-Birus da Indonésia

Chineses de Bukkitingi

A obstinada e fanática “busca de almas” da época dos Descobrimentos foi um rotundo fracasso em Samatra, não se podendo o mesmo dizer do trato da pimenta, que a muitos deixou ricos. Em todo o distrito de Padang, em cuja jurisdição se inclui Bukkitingi, um total de vinte mil católicos, eis o que resta da tentativa de evangelização. Por católicos, entenda-se chineses e javaneses. Menancabos, nem um para amostra.

Responsável por cerca de mil paroquianos, o basco Sabino Gozostiaga, 68 anos, «23 de Indonésia», confessava viver numa «constante expectativa». Incomodava-o, «um pouco», a chamada para a oração, vinda da mesquita mesmo por detrás da igreja de São José, que o acordava todos os dias de madrugada.

«– Nem preciso de despertador. Às quatro em ponto, o ulema encarrega-se de me alertar para os meus deveres diários».

Quanto ao seu trabalho, o missionário xaveriano não tinha ilusões.

«– O islamismo está muito enraizado na população local. Impossível conseguir qualquer conversão entre menancabos».

E se, porventura, isso acontecia, a coisa terminava mal. Entre menancabos, o convertido era considerado um traidor, um pária, nem a família o aceitava de volta. Sabino lembrava-se até de vários de casos de mortes, os tristemente famosos e sinistros “crimes de honra”.

Consciente do melindroso terreno que pisava, e sempre que alguém lhe vinha pedir conselhos ou informações sobre o catolicismo, o pastor (assim eram designados os padres católicos em Samatra) de Navarra media bem as palavras e atitudes. Ser acusado de proselitismo era o pior que podia acontecer em território islâmico.

Em Bukkitingi os sinais de existência da comunidade chinesa eram ténues e, por isso, a uma hora a sul da linha do equador o Ano Novo Lunar passara praticamente despercebido. Panchões? Nem vê-los, nem ouvi-los. Na noite de passagem de ano estouraram dois foguetes e nada mais. Se juntarmos a esta tímida pretensão pirotécnica uma família que jantava no bufê do Novotel, a quem desejei kung hei fat choi, resumido ficava o ensejo de boas entradas no novel ano que, asseguravam os geomantes, seria auspicioso e repleto daquelas promessas que todos sabemos que nunca passarão disso mesmo.

«– Ainda há poucos anos não eram permitidas festividades, tão-pouco os apelidos chineses», dizia Roby, o dono do GigaNet, o melhor e mais frequentado cibercafé de Bukkitingi, essa semana em promoção: dez mil rupias por uma hora de acesso à Internet.

O jovem chinês fazia parte de um grupo de dança do dragão sediado em Padang, o terceiro maior centro urbano de Samatra: «Ficámos em sexto numa competição internacional, logo a seguir aos malaios de Genting». Essa era a sua forma de mostrar apreço pela milenar tradição dos seus ancestrais, se bem que se assumisse, «acima de tudo», como indonésio.

«– Estamos perfeitamente integrados», concluía, com convicção. «– Nem eu nem o meu pai sabemos falar Fukinense, Cantonense ou até Mandarim. O meu avô dizia que estes dialectos não serviriam de nada. Pelo contrário, só nos acarretariam problemas ao longo da vida».

Parecia adivinhar, o idoso, o que se iria passar em 1998, logo após a queda do ditador Suharto, quando centenas de indonésios de etnia chinesa assistiram, impotentes, à pilhagem e destruição das suas lojas e restaurantes, tendo muitos deles perecido durante a violenta agitação.

Entre chineses, a atitude passaria a ser, doravante, de reserva e discrição. Em Bukkitingi, por exemplo, só um olhar atento perceberia que grande parte do comércio da rua principal, a Jalan A.Yalan, lhes pertencia. Nem mesmo as gaiolas com pássaros coloridos evidenciavam esse hábito tão chinês há muito adoptado pelos menancabos, que cultivavam agora a “arte” do pássaro engaiolado com fervor e cuidada estimação, agregando-se em clubes e exercitando a bicharada para os concursos semanais. Até o acto da queima de incenso e “dinheiro do inferno” à porta de casa ou do estabelecimento comercial, esse, sim, sinal de pertença a tão singular etnia, só o presenciaria uma ou duas ocasiões no decorrer da primeira semana do Ano do Cavalo.

O desconhecimento do seu idioma ancestral, característica comum aos chineses do Oeste de Samatra, tinha um preço. Olhavam-nos de soslaio, os seus pares de Medan, na costa leste, que não só mantinham a língua viva, como faziam questão de se distinguir das restantes etnias do arquipélago indonésio.

«– Chamam-nos cabeças de porco, por não sabermos falar nem escrever Chinês», afirmava Roby, que encontrava na hospitalidade e horizontes largos dos menancabos a explicação para o esquecimento da língua dos seus antepassados.

Selvie Muyadi, aliás Li Mei Ling, e Evelyn Njoman, aliás Yang Ing Siaw, ambas de origem fukinense, ao contrário do que pensava o seu amigo Roby, só viam vantagens na aprendizagem do Mandarim, que designavam «língua mãe» da China. Selvie viera passar o ano novo com a família e em breve regressaria ao seu emprego de consultora em Batam, a cidade indonésia com o maior nível de crescimento, situada no arquipélago de Riau, mesmo em frente a Singapura.

Joaquim Magalhães de Castro

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