O vira minhoto dos Gastarana
Nas salas do Rumah Gadang Payarugung, réplica do palácio dos rajás locais, transformado em museu, a poucos quilómetros da aldeia de Silinduang Bulang, constatei, por exemplo, que o traje de noivo tradicional dos menancabos, exposto numa das vitrinas da sala principal do rés-do-chão, só se podia ter inspirado no vestuário português do século XVII. Expostos, com grande destaque, havia vários instrumentos de música ocidental, popularizados na ilha pelos portugueses, tais como cavaquinhos, rabecas e tambores de caixilho.
Nessa noite, ao assistir a uma apresentação cultural para turistas, levada a cabo pelo ensemble Gastarana, fui surpreendido pela sonoridade musical e pelos passos de dança que nos propuseram. Impressionante. Dir-se-ia música de fusão minhoto-javanesa!
A essa matéria tem dedicado extremada análise a etnomusicóloga australiana Margret Kartomi, que conclui o seguinte: «No mundo da expressão malaia do litoral da Indonésia e da Malásia coexistem três níveis de música ritual: a música pré-muçulmana, que se desenvolveu durante o primeiro milénio d.C., e que consiste principalmente em conjuntos de tambores e gongos; a música influenciada pelo Médio Oriente, que data do evento do Islão, sobretudo do século XV; e a música malaia de influência portuguesa, ligeiramente harmoniosa, que desenvolveu vários estilos desde o período de contacto do mundo malaio com os portugueses no fim do século XV».
Convém recordar que essas melodias eram habitualmente executadas por grupos compostos por violas, banjos, cavaquinhos, uma flauta, um violino (biola), tambores e outros instrumentos de percussão, que acompanhavam um cantor ou uma cantora.
Creio bem ter presenciado nessa noite alguns dos diferentes estilos de Samatra, nomeadamente as cantigas de dança ronggeng, joget (joguete), lagu dua e sinadung, particularmente populares na costa oriental da ilha.
Como salienta Kartomi, «estas formas musicais sincréticas acompanham uma larga gama de danças, na maior parte executadas por casais, que respondem uns aos outros, cantando uns versos improvisados».
Tanto em Samatra, quanto na Malásia, essas danças incluem tari saputangan (dança do lenço), tari payung (dança do guarda-chuva), tari lilin (dança da vela), tari joget ou tari roggeng (dança com saltos rápidos) e tari dondang sayang (canção/dança de amor).
A presença em Samatra dessa sonoridade tão agradavelmente familiar era de tal ordem que até as canções que passavam nos intervalos entre as maratonas de batida tecno da discoteca 2002, acabadinha de estrear, e que eu ouvia no quarto da pensão onde estava alojado, me pareciam um misto entre o forró brasileiro e o folclore minhoto.
O mercado municipal de Bukkitingi fica mesmo ao lado do término dos fiacres puxados por póneis, uma das especificidades da cidade, transporte público de eleição. Nesse labirinto de tendas e tendinhas, onde sobressaíam as cada vez mais requisitadas t-shirts com o busto de Bin Laden, depararia com mais um vestígio da nossa passagem. Numa banca com uma variedade impressionante de cassetes e VCD, sobretudo de música tradicional, reparei num tema recorrente em muitas das bandas: o kaparinyo, canção inicialmente popularizada na costa oeste de Samatra e posteriormente divulgada em todo o arquipélago. Ora bem, o kaparinyo provém do lagu cafrinyo, tema de origem portuguesa, ainda hoje cantado no bairro dos luso-descendentes de Tugu, nos subúrbios de Jacarta, e que se insere num estilo musical denominado kroncong, que Margret Kartomi define da seguinte forma: «Kroncong é ao mesmo tempo um conjunto e um reportório musical, caracterizado principalmente por um estilo vocal em que se canta de uma maneira sentimental, com um acompanhamento instrumental em que são utilizadas harmonias europeias».
Na sua forma original, os tempos e contratempos do kroncong eram tocados em viola apropriada, com corpo de madeira ou casca de coco, hoje praticamente obsoleta. São três os tamanhos das violas kroncong: macina (maior e mais grave), bordong (tom e tamanho médios) e prounga (mais pequena e de som mais agudo). Actualmente, os agrupamentos que mantêm vivo esse estilo musical substituíram as violas kroncong pelos cavaquinhos e bandolins eléctricos, podendo eventualmente integrar a orquestra o violino, a flauta e vários tipos de percussões.
Mestiços e escravos africanos, indianos e malaios com carta de alforria, os denominados mardijkers, ou “portugueses negros”, como também eram conhecidos, foram os primeiros intérpretes deste género musical, que, de certa maneira, podemos associar ao fado. Durante o domínio holandês, essa gente, entretanto classificada como portugi, logrou obter um pedaço de terra, fundando a colónia de Tugu, ainda hoje existente. Distingue-os o crioulo e o kroncong, cujos intérpretes, em Java e no Sul de Samatra, são conhecidos como tanjidores.
Aquando da sua visita a Jacarta, em 1933, o historiador Charles Boxer registaria os seguintes versos de um poeta local: “Bastiana, Bastiana/ Bastiana minja ouro/ Bastiana lensu/ Komigu pinhor/ Nang quer fica triste/ Ficai consolad/ Kom algum dia mais/ lo fica djuntad”.
A maior parte das famílias de Tugu emigrou para a Holanda, já na década de 1970, tendo as restantes ido viver para o centro da cidade, deixando o bairro praticamente abandonado. Não obstante, os que resistiram continuam a manter vivas as suas tradições e há ainda quem se lembre do patuá local, socorrendo-se de deliciosas expressões como “tem gente que quer bir casa”, sempre que anunciam a chegada de um forasteiro.
Joaquim Magalhães de Castro