Bandeirantes na distante Rondônia
Durante a uma curta estadia na remota Rondónia vieram-me à memória conversas tidas com o meu amigo António de Maues Collaço, historiador e professor universitário, que herdou do bandeirante Pedro Teixeira o espírito aventureiro e o inconformismo. Collaço lamentava a eterna ausência de uma estratégia para projectar Portugal a nível planetário e acusava Lisboa e «o círculo do poder nela anichado» de ter o resto do País refém das «suas excentricidades e caprichos». Comparava a grave situação de Portugal aos processos auto-mutiladores que minaram Goa, e depois Macau.
«A razão da endémica crise é o excesso de mandarins que sempre pulularam nesta terra», dizia ele. E explicava porquê: «Iam em comissões de três ou quatro anos e apenas procuravam enriquecer durante esse tempo. E como o dinheiro mal ganho é dinheiro mal gasto, este nunca seria aplicado de uma forma produtiva». O que fez com que não se criasse riqueza. No entender de Collaço temos vivido um pouco de terceiros, desde então. Vivemos da África, do Oriente, do Brasil, e depois «passámos o século XIX» a perguntarmo-nos o que é que haveria ser de nós. «Ainda hoje vivemos dos fundos de Bruxelas», concluía.
Na companhia desse meu amigo, o tempo era o menos importante. Ouvia-o falar, com imenso prazer, horas a fio. Fosse a uma mesa do bar da Casa do Alentejo com um copo de vinho e um prato de azeitonas e um outro de pão para acompanhar a apetitosa salada de grão-de-bico; fosse nos trópicos de Malaca, em Junho, em plena festividade San Pedro, padroeiro dos pescadores luso-descendentes, onde o conheci pela primeira vez, há mais de uma década. Maues Collaço era então leitor de português em Kuala Lumpur e confiara-me as chaves de sua casa, apesar de ter acabado de me conhecer. Tentou implementar uma rede de contactos que permitisse um verdadeiro diálogo Oriente-Ocidente, projecto votado ao desprezo por quem de direito. Um desprezo que, infelizmente, parece que continua actual. «O Governo da Malásia estava disposto a apostar numa forte presença cultural europeia dentro de portas. Para Portugal, disponibilizou uma casa de arquitectura colonial, a melhor de todo um bairro, para que aí fosse criado um centro cultural português. Mas o nosso Governo, por mais incrível que pareça, recusou a proposta, alegando os excessivos custos de manutenção!», recordava o historiador.
O Sudeste Asiático não era território estranho, nem para mim nem para ele. O arquipélago indonésio conhecera «no tempo em que as relações diplomáticas se encontravam cortadas», como fazia questão de salientar.
QUINTO IMPÉRIO
Maues Collaço identificava-se com a ideia do Quinto Império. Esse império espiritual idealizado pelo padre António Vieira que nunca se viria a concretizar porque os «interesses de mercearia, dos secos e molhados», como escrevia Agostinho da Silva, falou mais forte.
Seiscentista assumido, não se entusiasmava muito com a Europa e lembrava que no tempo de D. João V o Algarve esteve para ser cedido à Espanha em troca do Chile, «para ficarmos com uma unidade bioceânica na América do Sul». O rei passaria para o Brasil, «em princípio para Belém do Pará», e aí far-se-ia a grande capital do reino do império do Ocidente, desistindo-se dessa coisa da Europa.
Dessa coisa da Europa!? Sim, o nosso destino, a força maior estava fundamentalmente virado para outros sítios que não a Europa. E ainda hoje é assim? Hoje será a Europa, também. Depende como seja encarado o projecto lusófono.
Para o historiador, na Lusofonia, o mais importante são os crioulos, «cujo capital é Cabo Verde». Essa é, na sua opinião, a raça cósmica representativa do Portugal de um Quinto Império «construído de afectos, cheiros, gostos, enfim um império feito de paz». Como o que existe, em certa medida, no Alentejo, onde vivia.
Outro dos males que Collaço apontava aos portugueses – de hoje e de outrora – é a sua extrema vaidade. Habituaram-se a viver num mundo de interesses materiais, esquecendo-se da sua primordial missão. Nem os religiosos escaparam à tendência. A propósito, o historiador recordava António Raposo Tavares, Pedro Teixeira, seu ascendente, e outros bandeirantes de quem tão pouco se fala. E porquê? Resposta pronta de Collaço: «Porque a Igreja os considerou filhos do diabo». A hierarquia religiosa não queria a penetração para o interior do Brasil, já que havia um plano semi-secreto da Igreja (ou de determinada ordem religiosa, leia-se jesuítas) de se apropriar daquelas terras.
A AVENTURA DE TEIXEIRA
Pedro Teixeira nasce em Cantanhede, «não se sabe bem a data», de famílias oriundas do Douro. Vai para os Açores, onde casa por duas vezes, «já que a primeira mulher morre pouco depois do enlace». Ruma ao Brasil. Dados exactos localizam-no em Olinda, envolvido nas campanhas contra os holandeses. Estes, juntamente com os franceses e os ingleses, tentam penetrar no interior e chegam a controlado até o Maranhão. Teixeira combate-os durante anos e consegue várias vitórias. A sua participação numa expedição ao Amazonas culmina com a fundação da cidade de Belém do Pará, em 1616. Uma década depois, numa viagem de reconhecimento ao baixo Amazonas, Teixeira depara com um grande rio a que dá o nome de Tapajós, em homenagem às tribos ali residentes com as quais estabelece excelentes laços de amizade.
No início de 1637, chegam a Belém dois franciscanos espanhóis dando a conhecer a presença espanhola no alto Amazonas. O governador de então, Jácome Raimundo de Noronha, antevendo a glória, pensa de imediato no alargamento da soberania portuguesa. Para concretizar a ambiciosa tarefa elege Pedro Teixeira, que, «acompanhado de setenta soldados portugueses e mil e duzentos índios», sobe o Amazonas até ao Perú e Equador, feito que levou o ilustre Joaquim Nabuco a chamar-lhe «o Vasco da Gama do Amazonas». E o certo é que o bandeirante navegou igual distância à que foi percorrida pelo famoso navegador. Nalgumas das cartas escritas que deixou, a margem de erro, «de acordo com o historiador Max Justo Guedes», anda à volta de sessenta quilómetros apenas. O que, para a época, é de uma precisão científica impressionante.
Vinte e seis meses depois, Teixeira e comitiva entram, como heróis, em Belém do Pará. Esse homem, «que no fundo consubstancia o Tratado de Tordesilhas na prática, alargando o Brasil para o outro lado» é hoje, injustamente, pouco conhecido. O seu nome não consta nos tratados sobre os grandes exploradores. E essa lacuna, na opinião de Maues Collaço, deve-se «ao boicote feito pela Companhia de Jesus que dominava os estudos e a divulgação científica».
Teixeira assume, em 1640, a capitania do Estado do Pará. Pouco depois as suas funções eram já de governador. E assim, o Governo do Pará mantém-se nas mãos da família, até hoje. O que nos conduz à ligação genealógica de António Maues Collaço com o bandeirante.
Ligavam António Collaço ao Amazonas os cheiros, os gostos, a luz. Foi criado pela avó, que era amazonense e tinha uma memória extraordinária. Ela contava-lhe histórias de pássaros, de índios, dos ruídos de todos os animais, e ele adormecia a ouvir tudo aquilo. Histórias que fizeram parte da sua reserva mental, e assim, «quando foi oportuno», e depois dos percursos que fez, sempre ligado à geografia nas antigas colónias inglesas onde viveu, e particularmente quando o convidaram para ser “fellow” da Royal Geographic Society, decidiu que havia de organizar uma jornada ao Amazonas. Era sua ideia reproduzir a viagem de Teixeira nas mesmas condições da época, ou seja: num barco à vela. Tal, porém, requeria vários anos, o que era insustentável. Contou com patrocínios e foi acarinhado pelos meios de comunicação social brasileiros, porém, por condicionalismos vários – «entre os quais o perigo de ataque de narcotraficantes em certos percursos do Amazonas e um pequeno conflito bélico entre o Peru e o Equador» – a expedição acabaria por se limitar a uma viagem de reconhecimento, «para um futuro projecto mais alargado».
O Amazonas continua à espera. Com os seus cheiros, os seus gostos, a sua luz. À espera de uma nova bandeira.
Joaquim Magalhães de Castro