José Salgueiro, percussionista, autor do projecto ADUF

«Na China acredito que podemos construir algo».

José Salgueiro, membro do grupo Trovante, esteve em Macau por ocasião do Festival da Lusofonia. A’O CLARIM, lembrou a primeira experiência que viveu no território em 1986, falou dos inúmeros projectos que abraçou conjuntamente com alguns dos maiores nomes da música portuguesa e do sonho que há muito tem pensado para terras asiáticas: criar uma orquestra luso-chinesa de instrumentos de percussão. Sobre a actualidade musical e cultural de Portugal, afirmou que a massificação tem-se sobreposto à qualidade.

O CLARIMQuando veio pela primeira vez a Macau e integrado em que projecto?

JOSÉ SALGUEIRO – Foi em 1986. Vim tocar com o grupo Trovante, no pavilhão do antigo fórum. O concerto correu muito bem, com grande aceitação por parte da comunidade portuguesa. Felizmente ainda há em Macau quem se lembre desse concerto onde fiz amigos que mantenho até hoje.

CLQual a sua percepção de Macau nessa altura?

J.S. – Recordo que Macau era ainda uma vila. Nesse tempo o mar chegava ao Casino Lisboa que era o edifício mais alto que existia em Macau. Havia apenas uma ponte para a Taipa e uma outra muito pequenina para entrar em Coloane.

O que senti dessa primeira vez foi que queria voltar um dia, sabia que era a prazo, que a estadia era curta. Foi um enorme choque cultural para mim, e tive um encontro também com o imaginário daquilo que aprendi na escola primária, que Portugal era enorme, cheio de colónias e havia umas muito distantes, entre as quais Macau. E quando surgiu a oportunidade de vir a Macau foi um sonho que eu estava a realizar. Estivemos cá cerca de dez dias, visitámos Cantão, numa altura em que tínhamos de tirar os vistos com uma semana de antecedência.

CLAo longo da sua carreira teve o privilégio de trabalhar com grandes nomes da música portuguesa, qual ou quais o marcaram mais?

J.S. – Quando se é músico as experiências vêm em catadupa. Em primeiro lugar os Trovante, porque de alguma forma foram o pontapé de saída para eu me tornar músico profissional. O grupo já existia, eu fui convidado pelo meu professor de bateria que tocava no grupo. Foi sem dúvida fundamental para o meu crescimento como músico e intérprete, quando comecei a ter contacto com o público e a ter a responsabilidade de tocar para muita gente. Depois toquei com o Sérgio Godinho, Zeca Afonso, José Mário Branco, Júlio Pereira, Rui Veloso, Vitorino, entre muito outros. Nessa altura havia três ou quatro bateristas a iniciarem a carreira em Portugal e eu era um deles.

CLO projecto “Tim Tim Por Tim Tum”, do qual foi co-fundador, arrancou em 1996 com uma única edição intitulada “Diálogos de Bateria”. É um projecto que ficou no passado ou pensa que no contexto actual faria sentido?

J.S – É um projecto que faz todo o sentido continuar a existir. O espírito exploratório inicial com que nos juntávamos para aprender uns com os outros, partilhar o que sabíamos criando um repertório conjunto continua a ser o lema.

Hoje em dia encontramo-nos quando há a oportunidade de tocarmos juntos.

CLFoi convidado pela Expo 98 a conceber o espectáculo ADUF. Nessa altura disse que «o que se passava com a tradição portuguesa é que nunca ninguém quis inventar nada». Considera que este projecto conseguiu de certa forma ir contra a corrente?

J.S – Sem pretensiosismo acho que se arriscava pouco em termos criativos. O que eu imaginava com o ADUF era ir buscar outras influências e tentar encaixá-las dentro das raízes portuguesas. No fundo eu focava um pouco o facto de a música tradicional estar tão parada porque os músicos que a tocavam apenas a executavam mas não recriavam, agarrando naquilo que já tinha sido feito e apenas repetindo. O que eu fiz na altura foi usar esses mesmos temas e dar-lhes um novo arranjo, outra perspectiva, e sobretudo na percussão que era muito pobre. Tudo o que nós fazemos na vida é importante e não é só para nós. A nível cultural, sinto a obrigação de ser inventivo, fazer diferente. A arte seja ela qual for tem necessariamente de abrir novas perspectivas.

CLEm 2008 convidou o guitarrista e compositor José Peixoto para darem início a um novo ciclo no projecto ADUF. Sentiu que era preciso dar uma nova vida ao projecto inicial para que o público se sentisse mais identificado e interessado pelas raízes e pela tradição portuguesa?

J.S – A seguir à minha participação com os Gaiteiros de Lisboa, onde estive oito anos senti necessidade de voltar ao conceito ADUF. O projecto inicial perdeu-se pela dificuldade que eu sempre encontrei em que o conceito fosse aceite por uma vasta audiência. Actualmente aquilo que eu me proponho fazer no ADUF, juntamente com o José Peixoto, é criar uma música com que nos identificamos, com a nossa capacidade de imaginar música, com as nossas escolas e influências, e criar algo novo em português.

CLEm 2013 esteve no Festival Internacional de Música de Macau com o projecto ADUF, o que sentiu nessa ocasião?

J.S. – Ao fim de alguns anos de tentativas consegui trazê-lo a Macau. Não foi fácil devido à logística complexa, pelo facto dos instrumentos serem grandes,

mas o que eu mais gostei foi sem dúvida a grande aceitação por parte do público chinês. Senti que poderia estar a dar os primeiros passos em direcção ao meu sonho de criar uma orquestra de percussão luso-chinesa.

O espectáculo correu muito bem, musicalmente, profissionalmente e a nível técnico. Fiquei muito feliz.

CLO projecto ADUF continua vivo?

J.S. – Temos muito poucas actuações – três ou quatro por ano – porque não é um projecto que passe na rádio, não é uma música muito divulgada ou conhecida. E também por falta de apoio por parte dos promotores que acham que não é um espectáculo para as massas. Hoje em dia o que se passa é que só se quer dar ao público coisas em que ele reaja logo, com resultados imediatos. A cultura em Portugal sofre um pouco disso, existem imensos projectos de qualidade, só que não chegam aos canais que atingem mais público e que poderiam ajudar a que os artistas se pudessem desenvolver mais ainda.

CLEsteve agora em Macau na Festa da Lusofonia. Com que impressão ficou?

J.S. – Tenho vindo a Macau com alguma regularidade na altura da Lusofonia. Fui assistindo às mudanças em termos arquitectónicos e da população, de construção de uma sociedade cosmopolita mas também consumista.

O Festival da Lusofonia é muito importante porque cada vez vejo mais chineses a gostar da música em língua portuguesa, a encontrarem-se numa festa de matriz portuguesa, a sentirem essa alegria, a conseguirem partilhar e comunicar com outras culturas e outras nacionalidades. Nesse aspecto acho que a festa é muito importante, aliás, como qualquer movimento em que as culturas se possam misturar.

CLQual a sua percepção desta nova corrente de músicos portugueses que estão mais virados para a música tradicional?

J.S. – Tenho uma percepção muito positiva. São excelentes músicos que fazem coisas muito interessantes. A prova está no vigor dos Virgem Suta, ou nos Diabo na Cruz e numa série de grupos e autores que estão a produzir belas obras, dando voz aos poemas e poetas portugueses.

CLConsidera-se uma referência na música portuguesa?

J.S. – O nosso trajecto nunca é por acaso. Quando fazemos uma coisa em que acreditamos e amamos profundamente até podemos nunca beneficiar nada com ela, mas alguém vai sair beneficiado com isso, e isso é o mais importante. De certeza que eu, enquanto músico e artista, tive e ainda bem, as melhores influências e referências que poderia ter tido, e deixei boa impressão em outros músicos que continuam o seu trabalho e que me têm a mim como referência. Futuramente serão também eles uma referência para outros músicos que hão-de vir e de outras gerações. Eu vejo a vida e a existência humana sempre como uma continuidade. Temos que viver a vida com boa energia e tentar influenciar os outros positivamente.

CLQuais os seus projectos ou planos para o futuro?

J.S. – Quando trouxe o espectáculo ADUF a Macau tinha muita esperança de vir a conseguir ter um encontro na linguagem rítmica, na percussão com a comunidade chinesa; conseguir encontrar em Macau ou na China alguém para criar uma parceria que pudesse fazer com que os instrumentos que eu inventei, obviamente inspirados no adufe tradicional e agigantados para outras dimensões, promovessem um encontro entre a percussão portuguesa e a percussão chinesa, visto ser uma linguagem tão primária, em que não precisamos de falar a mesma língua, bastam os ritmos. Os instrumentos utilizados no projecto ADUF construídos por mim, foram inspirados nas culturas asiáticas, sobretudo no Japão.

Na China há uma riqueza ímpar de instrumentos milenares e sinto que algures aqui está por se fazer o encontro entre a percussão luso-chinesa.

Criar um evento onde se pudessem cruzar essas linguagens e quem sabe fazer uma orquestra de percussão, que pudesse participar em eventos e manter-se viva. Isto era o meu grande desejo, o meu grande sonho como músico que sonhou Macau.

CLO CLARIM é um jornal católico e não posso terminar sem lhe colocar uma última questão. Em algum momento da sua vida teve contacto com algum tipo de prática religiosa?

J.S. – Não fui baptizado à nascença, mas tive uma vizinha que era evangélica protestante e levava-me à escola dominical aos Domingos de manhã. Ouvíamos falar da Bíblia, das histórias de Deus. Eu vejo a religião como uma forma de mostrar direcções para o bem, é um caminho para o bem. O bem e o mal estarão sempre juntos, farão sempre parte, o importante é o equilíbrio. Não sou praticante, mas penso que é um recolhimento e uma forma única para as pessoas estarem com elas próprias.

O artista (Caixa)

José Salgueiro é um dos mais famosos bateristas e percussionistas portugueses, tendo estudado na Academia dos Amadores de Música, no Conservatório Nacional de Lisboa, no Hot Club de Portugal e Teoria de Improvisação (bateria e trompete – 1988) no Taller de Musics (Barcelona). A sua actividade tem-se desdobrado pela música popular e pelo Jazz. Na música popular, José Salgueiro integrou o Trovante, como baterista, entre 1983 e 1991, tendo colaborado igualmente com diversos artistas de renome, como Sérgio Godinho, Zeca Afonso, José Mário Branco e Rui Veloso, entre muitos outros. Como músico de Jazz, colaborou com a cantora Maria João e com diversos músicos, dos quais se podem destacar Mário Laginha, Carlos Bica, José Peixoto, António Pinho Vargas, Bernardo Sasseti, Carlos Barreto ou Carlos Martins. Integrou outros projectos como os Resistência, Cal Viva e os Gaiteiros de Lisboa, sendo um dos co-fundadores do projecto “Tim Tim Por Tim Tum” e autor do projecto ADUF (concebido através de um convite para a Expo 98 em Lisboa). Em 2008 retomou o projecto ADUF, em parceria com José Peixoto e Maria Berasarte, com um registo áudio editado em 2010 pela Adufmusica, da qual é fundador. Toca actualmente com Lokomotiv de Carlos Barretto e El Fad de José Peixoto.

Ana Marques

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