Na raia, a memória do padre “milagreiro” continua viva
Faleceu em Novembro de 2001 e se dependesse da vasta legião de devotos que deixou já tinha um lugar cativo nos altares. O nome de José Miguel Garcia Pereira – conhecido nos quatros cantos de Portugal simplesmente por “Padre Miguel” – continua a levar milhares de peregrinos ao Soito, uma pequena vila do concelho do Sabugal situada a trinta quilómetros de Espanha.
O sol insolvente de meados de Agosto cobre com um véu de fogo as terras da raia. No exterior do Centro Social Padre José Miguel, um par de utentes da instituição abriga-se do sol brando do final da tarde sob um plátano, à distância segura de uma robusta vedação. Pelo intercomunicador chegam os ecos de um campainha e um rumorejar leve, mas de dentro das instalações não chega resposta.
Intrigados com a visita, o par – um gigante bonançoso com cara de lua cheia e um idoso franzino e macilento – mantém-se arredado. A presença de ambos, ainda que indiferente, é um bálsamo para os olhos ao fim de um quarto de hora a pé por ruas estranhamente despovoadas. Há dezenas de carros estacionados na berma do caminho, em alguns pontos de um e do outro lado da estrada, mas não se vê viv’alma. No parque de estacionamento do Centro Social, em contrapartida, não há um único veículo.
Com instalações que nada deixam a desejar, a instituição, operada pela Associação Cristã “Paz e Bem”, é um dos locais onde se mantém viva a memória e o legado espiritual de José Miguel Garcia Pereira, o sacerdote raiano que durante quase trinta anos transformou a pacata vila do Soito, no concelho do Sabugal, num dos principais centros de peregrinação de Portugal.
Aliciados pela fama de “milagreiro”, os devotos começaram a rumar aos milhares, no final da década de 70, à paróquia de Meimão, no vizinho arciprestado de Penamacor, e depois à sua terra natal, onde faleceu em 2001, aos 89 anos. A 10 de Novembro, dia em que foram conduzidas as exéquias fúnebres, as ruas do Soito revelaram-se pequenas para o mar de gente que ali assomou para um último adeus ao caridoso sacerdote que o povo aclamou como santo. As longo dos arruamentos da vila, escreveu na altura o jornal Público, eram muitos os veículos estacionados, um número substancial dos quais com matrícula francesa. Autocarros – provenientes de origens tão díspares como o Porto, as Caldas da Rainha, Barcelos ou Penafiel – contavam-se às dezenas.
Os devotos atribuíam-lhe inúmeras graças e milagres, mas José Miguel foi sempre o primeiro a desdenhar do rótulo de santidade que lhe era assacado. De uma generosidade extrema e uma aura de fé que se fazia palpável aos olhos de quem o procurava, dizia apenas ter sido escolhido por Deus para ser seu interlocutor.
É essa aura de fé que continua a levar centenas de peregrinos ao Soito, quase vinte anos após o desaparecimento físico do Padre Miguel. Natural de Santarém, Marisa Sousa cumpriu no final de Agosto um ritual anual que mantém religiosamente desde os verdes anos da infância. «Conheci o Padre Miguel quando tinha sete, oito anos, quando me apareceu uma doença rara. Os meus pais correram tudo. Consultaram médicos e especialistas, foram comigo a curandeiros, mas ninguém sabia do que se tratava. Os meios de diagnóstico na altura eram pouco avançados», lamenta a escalabitana, hoje com 36 anos. «Um dia alguém lhes falou do Padre Miguel e fizemos a viagem desde Santarém à procura, sobretudo, de alguma esperança. Tenho manchas na pele e nos sítios onde tenho manchas tenho os músculos atrofiados. Na altura as manchas estavam constantemente a mudar de aspecto. Depois de ter sido abençoada pelo Padre Miguel, a doença estagnou. Não foi uma cura, é certo, mas a doença nunca mais evoluiu», assegura Marisa Sousa, em declarações a’O CLARIM.
O carismático sacerdote tinha por hábito dar às crianças que o visitavam uma moeda, o mais das vezes de dois escudos e cinquenta centavos. O gesto, defendia, criava entre ambos um vínculo semelhante ao existente entre padrinhos e afilhados, ainda que sem o resguardo espiritual conferido pelo baptismo. Marisa há muito que perdeu o rumo à moeda que recebeu das mãos do Padre Miguel, mas o episódio, repetido com centenas de crianças oriundas dos quatro cantos de Portugal, inspirou o espaço que a jovem de Santarém criou na rede social Facebook para honrar a memória e o legado espiritual do padre do Soito. A página “Afilhados do Padre Miguel” tem 845 seguidores e agrega um extenso rol de testemunhos a dar conta de um sem fim de graças concedidas por intercessão de José Miguel Garcia Pereira. «Sou apenas uma entre milhares de afilhados do Padre Miguel», faz questão de salientar Marisa Sousa. «Os peregrinos continuam a visitar em grande número a pequena capelinha onde foi sepultado, embora já não se assista à loucura que se registava há alguns anos. A exemplo do que sucede com os testemunhos deixados na página, os peregrinos que visitam o Soito são sobretudo portugueses, mas chegam de vários pontos do país», sublinha.
UM LONGO CAMINHO PARA OS ALTARES
“Milagreiro”, “anjo da guarda”, “protector glorioso”. Estas e outras expressões abundam em textos e comentários na Internet, nas redes sociais, e precedem, o mais das vezes, o relato de uma graça alegadamente concedida por intercessão do sacerdote do Soito. Se dependesse dos devotos, o Padre Miguel tinha já lugar cativo nos altares, mas a atitude dos responsáveis pela diocese da Guarda perante a aclamação popular tem sido de prudência.
A postura não surpreende José Cunha Simões. O livreiro, autor de uma mão cheia de obras sobre a vida e o legado de José Miguel Garcia Pereira, refere que o comedimento demonstrado pela Igreja Católica vai ao encontro do despojamento e da humildade que o próprio Padre Miguel manteve em vida. «O Padre Miguel sempre recusou qualquer grau de santidade enquanto vivo. Acreditava que era um protegido de Deus e que Deus lhe comunicava energias para beneficiar as pessoas que acreditavam que ele as podia curar e ajudar. A única condição era que amassem o próximo como a ele mesmo», explica o editor, de 83 anos, acrescentando: «A energia produzia efeitos segundo a pureza de cada um. Nos livros publicados sobre o Padre Miguel há relatos suficientes do que pode ser visto como milagres, mas ele não lhes dava essa importância. Acreditava que todas as pessoas têm energia para socorrer quem sofre ou quem enfrenta necessidades».
Antigo deputado à Assembleia da República, eleito como independente nas listas do CDS, Cunha Simões cruzou-se com o então pároco de Meimão em 1976 e o encontro marcou-o para sempre. «Desde o primeiro minuto em que o conheci, ele foi a confirmação de que todos os seres estão ligados permanente a Deus», admite o antigo parlamentar.
José Cunha Simões está convicto que a ascensão do sacerdote às honras dos altares é uma inevitabilidade, ainda que o processo relativo à causa de beatificação do Padre Miguel possa vir a ser moroso. «Parece-me que devido à posição do Padre Miguel em vida todos deixam correr o tempo. Acredito que mais tarde, com a devida contenção e comprovação de factos posteriores ao seu falecimento, seja possível levar por adiante o desígnio da beatificação», defende o responsável pelas Edições Cunha Simões. «O sobrinho, Artur Rito Pereira, tem recolhido bastantes relatos extraordinários que só depois de bem observados e confirmados podem ser do conhecimento público», conclui o antigo deputado.
Marco Carvalho