JOSÉ GOMES MARTINS (1935-2021)

JOSÉ GOMES MARTINS (1935-2021)

Morreu «uma referência de Portugal na Tailândia»

Vivia em Banguecoque há mais de quatro décadas e era desde há muito a figura mais destacada da actual presença portuguesa no antigo Sião. José Gomes Martins morreu na passada semana aos 86 anos, vítima de ataque cardíaco. O vazio que deixa na reabilitação dos laços luso-siameses dificilmente será suprido, dizem os amigos que deixou em Macau.

«Sinto que Portugal se esquece das pessoas que tiveram valor, que fizeram coisas».

José Gomes Martins, beirão que há quase cinco décadas encarnava a lusitanidade na Tailândia, faleceu na semana passada e Gonçalo César de Sá, amigo de longa data e antigo colega de trabalho na Agência LUSA, teme que o legado do cidadão português que mais fez para reabilitar a história das relações entre Portugal e o Sião se desvaneça.

Mecânico em plataformas petrolíferas, jornalista, representante comercial, diplomata oficioso, investigador, fotógrafo, historiador, “blogger” e coleccionador. Em 86 anos cabem muitas perspectivas de vida, mas é como «uma referência de Portugal na Tailândia» que José Martins é recordado por muitos, fruto do esforço de reabilitação das relações luso-tailandesas que empreendeu, mas também pela generosidade que sempre demonstrou para com aqueles que mais necessitavam de apoio numa nação estranha. «Ele dava tudo de si. Se uma pessoa estava aflita, fazia tudo o que estava ao seu alcance para ajudar. E isso é algo que não se encontra em muita gente. E não era sequer necessário que se fosse amigo dele. Um português que chegasse à Tailândia e que necessitasse de ajuda, fosse para o que fosse, ele estendia a mão e estava pronto a ajudar», recorda Paulo Rosa Rodrigues, que vê no amigo uma espécie «de Fernão Mendes Pinto dos nossos tempos».

Ao longo dos últimos quarenta anos, José Martins foi como que um porto de abrigo para dezenas de cidadãos portugueses para quem as férias num destino de sonho se tornaram inesperadamente um pesadelo. Pedro Lobo, professor da Escola Portuguesa de Macau, foi um dos muitos residentes do território a quem «o português mais tailandês do Sião» estendeu a mão. «Conheci-o quando a minha tia faleceu em Banguecoque. Os meus tios foram de férias para a Tailândia e a minha tia teve um problema de saúde; faleceu lá e o José Martins foi das primeiras pessoas que me indicaram», conta o docente. «Isto aconteceu na altura da SARS. Eu viajei de imediato para Banguecoque e o José Martins foi ter comigo ao hotel e foi impecável. Nessa altura já lá vivia há duas décadas, quase três. Conhecia as pessoas, era uma pessoa muito desenrascada. Toda a gente o conhecia, toda a gente o respeitava. Não era uma pessoa muito fácil. Era muito assertivo, muito ríspido por vezes. De qualquer forma, foi alguém que nos recebeu muito bem, que nos ajudou imenso», lembra Pedro Lobo.

Meses mais tarde, a 26 de Dezembro de 2004, quando um violento tsunami varreu boa parte da orla costeira do Oceano Índico, vitimando quase 230 mil pessoas, José Gomes Martins foi dos primeiros a mobilizar-se no terreno e a colocar-se ao serviço de dezenas de compatriotas que foram surpreendidos pela tragédia. «Quando se deu o tsunami, quem era o grande homem no terreno a ajudar os portugueses? Era ele. Esteve no aeroporto a tentar resolver os problemas das pessoas que tinham vindo; pessoas que tinham apanhado o tsunami em Phuket. Estava no aeroporto a ajudar toda a gente, enquanto que o então embaixador estava em Portugal…», sublinha Gonçalo César de Sá, fundador e director do grupo Macaulink.

«Foi ele quem foi receber os familiares das vítimas ao aeroporto, foi ele que andou de um lado para outro, que mandou as pessoas para Phuket, principalmente as pessoas aqui de Macau. As pessoas que faleceram estavam todas de férias em Phuket. Andou a ajudar no que lhe foi possível, a transportar as pessoas de carro, e comportou esses gastos do próprio bolso», corrobora Paulo Rosa Rodrigues.

O devastador maremoto do Natal de 2004 não foi, no entanto, a única ocasião em que José Martins esteve do lado certo da história. Nascido em Arcozelo da Serra, no concelho de Gouveia, o antigo representante do extinto Instituto do Comércio Externo de Portugal (ICEP) e da Embaixada de Portugal em Banguecoque teve um papel crucial na divulgação das imagens do Massacre de Santa Cruz e, indirectamente, na restauração da Independência de Timor-Leste. «Teve um papel importante quando foi o Massacre de Santa Cruz, em Timor-Leste. Foi ele quem divulgou as imagens que foram enviadas de Timor-Leste. Foi ele, a partir de Banguecoque, que divulgou as fotografias e o material sobre o Massacre de Santa Cruz», assinala Gonçalo César de Sá. «Ao longo dos anos, o José Martins privou com embaixadores, com Presidentes, sempre na defesa das coisas portuguesas e eu tenho imensa pena que o José Martins tenha morrido e que tudo aquilo fez caia no esquecimento. É assim que os portugueses do mundo desaparecem e não ficam na história. Eu acho que merecia uma homenagem, sinceramente», acrescenta o antigo jornalista da Agência LUSA.

A perspectiva de uma homenagem, ainda com contornos incertos, uniu nos últimos dias Gonçalo César de Sá e Paulo Rosa Rodrigues num mesmo desígnio. Diagnosticado com um nódulo no pulmão no final do ano passado, José Gomes Martins faleceu, vítima de ataque cardíaco, sem definir o destino que desejava dar ao extenso espólio documental que recolheu ao longo das últimas quatro décadas. Para os amigos que deixou em Macau, a melhor homenagem por parte de Portugal seria, porventura, garantir que um tal acervo fosse inventariado e estudado. «Era um pesquisador incansável. Passou a vida a procurar informação sobre a presença de Portugal no Século XVI: em Ayutthaya, no Camboja, no Laos. Fez um trabalho espectacular ao nível da reabilitação da presença portuguesa na Tailândia. Trabalhou muito tempo com o embaixador Mello Gouveia, fez um trabalho extraordinário em Ayutthaya, ao recuperar a igreja e o cemitério dos portugueses. Foi sempre um homem que esteve ao lado de todas as coisas que estiveram relacionadas com Portugal», nota Paulo Rosa Rodrigues. «Uma das hipóteses que colocou foi deixar os documentos que recolheu ao longo dos anos à Siam Society. O que eu sugeri foi que se não quisesse deixar à Siam Society ou se a Siam Society não quisesse receber esse acervo, outro local indicado era a Torre do Tombo. Por aquilo que eu conheço dele, tem documentação altamente exclusiva», complementa o engenheiro.

José Martins deixa a mulher tailandesa com quem casou há várias décadas, uma filha já adulta e um vazio que dificilmente será suprido. «Para mim, foi muito maior e muito melhor do que qualquer embaixador que passou pela Tailândia. Estaria a baixar-lhe a categoria ao equipará-lo a um embaixador. Era uma pessoa extraordinariamente interessante», conclui Rosa Rodrigues.

Marco Carvalho

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