Java Menor – 2

O poder do cavaquinho

Entusiasma-me, de sobremaneira, constatar que a ré dos elegantes barcos de Indramayu é em tudo semelhante aos castelos das antigas naus portuguesas. Aqui mencionamos a ré; mas noutros locais de Java falaríamos de proas alteadas a fazer lembrar os nossos moliceiros ou os típicos barcos da arte da xávega. Num e noutro caso estamos perante um óbvio legado luso emprestado à indústria naval indonésia. Até hoje – ocupadíssimos que estão os nossos académicos com o revisionismo histórico – ninguém se deu ao trabalho de fazer de tão interessante matéria objecto de estudo. De novo me pergunto: tendo em conta a data da fundação desta cidade, 1523, será que não se terão por aqui fixado alguns dos portugueses habituais frequentadores dos portos da Grande Java? É muito provável. Tira-me desta reflexão especulatória o pregão de um vendedor de siomay, “delicacia” cujo segredo está no molho de amendoim, leguminosa aqui introduzida, como milhentas de outras plantas, pelos nossos antepassados.

Segue no encalço do pracista um bem disposto grupo de rapazes, aqui designados de punks. Não percebo muito bem a razão de tal título. É que de punks nada têm, nem mesmo as camisolas cujas estampas apontam mais para entusiasmos heavy metal. Ora, aos ditos punks indonésios sempre os acompanham cavaquinhos de fios de nylon – os juks –, e os que encontro nesta proximidade de orla marítima não são excepção. Na sua versão infantil, adolescente ou jovem-adulto, o tocador de juk permanece uma das imagens mais características da Indonésia. Aparece-nos pela frente, já em plena cantoria, estejamos nos semáforos à espera de uma luz verde ou sentados num restaurante a degustar um ikan-bakar bem condimentado. Buscam desta forma o seu meio de subsistência milhares de jovens indonésios, e ao fazê-lo revelam a mais evidente forma de herança lusitana presente no dia-a-dia desta surpreendente nação.

À medida que nos aproximamos do Mar de Java aumentam o número de embarcações atracadas, a maioria no activo, outras visivelmente fora de jogo e com a pintura a descascar. A seu lado, invariavelmente, emaranhadas redes de pescas amontoam-se como se tivessem vida própria. É uma fila interminável de barcos pesqueiros até ao canal desembocar num mar raso e lodoso onde entram e saem pares seus de diversos tipos, vindos da faina ou a caminho dela. Aliás, as praias lamacentas são a maior decepção desta costa norte de Java. Mas nem por isso se livra o comum cidadão da cobrança de um inexplicável ingresso. Incrível! As pessoas não só não se importam de tomar banho no lodo como até pagam para isso. Em termos de área construída há apenas uma pequena mesquita – ou melhor dizendo, uma mushola (capela) – em forma de barco.

Mesmo em frente, numa ilhota, avista-se Karang Song, a atracção turística número um de Indramayu. Trata-se de modesta reserva natural patrocinada pela omnipresente Pertamina (disso nos informam uma série de faixas e placas) que no mangal instalou uns passadiços de bambu entrelaçado e uns quantos barcos que em permanência sulcam as águas povoadas por tainhas, enguias e peixes-gato, transportando os visitantes que cumprirão o agradável percurso pedestre rodeados de “avicenas marinas” – comummente conhecidas como mangue, cinzento ou branco, aqui designado api-api – sarapintadas dos dejectos da passarada que se faz ouvir mas não se mostra. Domina estas redondezas o género garça nas suas mais variadas vertentes: branca-grande, de coral, vermelha, a garça do lago (típica de Java), a nocturna e a de dorso preto. Pouco provável será depararmos com algum dos membros da comunidade local de varanos – lagarto protegido por lei –, pois é bicho recatado e pouco dado a passeatas. Para os que eventualmente se possam sentir tentados, está lá, à vista de todos, o sinal de interdição de caça.

O nome Indramayu, “o jardim da deusa Indra”, remete-nos para o Hinduísmo, assim como kepala (coqueiro, em Bahasa) a “árvore da fortuna do paraíso de Indra”, graças à qual se podem obter os mais exigentes desejos, numa alusão ao carácter multiutilitário da planta. Esse Hinduísmo latente resistiria aos avanços do Islão, procedente das cidades portuárias a leste, tendo como foco de irradiação a região de Gresik, actual cidade de Surabaia. Aí estabeleceriam residência os primeiros nove apóstolos dessa religião, ainda hoje venerados na Indonésia. São os designados wali sanga e quase todos eles obtiveram o título póstumo de sunan, “reverendo, respeitável”. Assumiria neste domínio preponderante desempenho a cidade-Estado de Demak, mais a oeste, fundada pelo muçulmano chinês Chek Ko Po, conhecido como Raden Patah. Cedo Demak se tornaria o principal centro difusor do Islão nas áreas costeiras e, depois, no interior de Java. Mais tarde, em 1524, o filho de Raden Patah, assumindo o título de sultão Pangeran Trenggana, em pouco tempo irá usurpar o que ainda restava do poder hindu Mahajapati sedeado no interior do País, e que fora durante muito tempo respeitado e temido, inclusive pelas cidades costeiras agora nas mãos de muçulmanos recém-convertidos.

Joaquim Magalhães de Castro

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