JAVA MENOR – 18

JAVA MENOR – 18

Labor missionário em chão hindu

Ao fixar a linha do horizonte destas águas amareladas e lamacentas, imagino as embarcações da primeira frota de Francisco de Sá para aqui acossada no decorrer de violenta tormenta. Várias fontes informam-nos que Sá e os seus homens, após mais do que prováveis actos de pirataria ao longo da costa javanesa, nomeadamente represálias nos arredores de Gresik, teriam ido vingar a morte de um certo António de Pina e outros comerciantes, antes de se refugiarem em Panaruca (Panarukan), na época ainda reino hindu.

Seguindo as indicações de D. João III, em 1532, Lopo Álvares, capitão do junco Santa Cruz, tomou posse “em nome do el-rei de Portugal” dos portos javaneses de Agracim (Gresik) e Panaruca, e das cinco ilhas de Banda, celebrando acordos de paz e comércio com as autoridades desses reinos. Assim, em regra geral, sempre foram boas as relações com os locais, fossem os portugueses meros funcionários do Reino ou simples exemplares dessa enorme soltura que há décadas povoava aqueles mares e portos. Soltura essa proporcionada pelo Governo de Lopo de Albergaria. Foi, aliás, por recear que os portugueses constituíssem uma aliança com o reino agrário budista e hindu de Majapahit, sedeado no interior do País (do qual restam vestígios como as ruínas de Barabudur, património da humanidade com direito a classificação pela UNESCO) que, em 1545, o reino costeiro de Demak e o vizinho principiado de Kudus uniram forças e invadiram o paço real de Panarukan, assassinando o rei e pondo assim fim à dinastia vigente.

Com a emergência do Sultanato de Demak e subsequente derrube do poder Majapahit, o reino de Blambangan (actual Banyuwangi) mantinha-se como derradeiro bastião hindu em Java. Numa tentativa de conter o crescente poderio islâmico logo iniciou o seu monarca contactos de cooperação com os portugueses de Malaca. Assim, desde os primórdios do século XVI há notícia da presença regular de comerciantes lusos em Panarukan – frequentemente referida como Patoekangan ou Panaroekan, actual Situbondo –, a segunda mais importante cidade e porta de entrada no reino.

Ora, muitos dos súbditos de Majapahit mantinham os ritos hindus e não se mostravam dispostos a converter-se ao Islão, disseminado a partir de reinos vizinhos (Pasuruan, Surabaya, etc.). Havia até quem mostrasse apetência para abraçar o Cristianismo, embora não houvesse aí clérigos que lhes ensinassem a cartilha desse novo credo. Só em 1579, e por iniciativa do duque de Panarukan, seria enviado convite formal aos missionários de Malaca. Era portador da mensagem o jesuíta Bernardino Ferrari, cujo navio com destino às Malucas fora forçado a arribar em Panarukan devido a uma tempestade.

Na época, a missão em Malaca encontrava-se desprovida de gente. Jesuítas concentravam esforços no norte de Halmahera e nas Malucas; dominicanos serviam as ilhas de Solor e Timor. Por fim, em 1584, Malaca despachava para o reino de Blambangan quatro missionários franciscanos. Pedro Aronca (Arouca?) e Jorge de Viseu instalaram-se na cidade de Panarukan – tratando logo de informar os seus superiores que “o porto de Panarukan era disputado entre os governantes muçulmanos de Pasuruan, aliados a Surabaya, e o rei ‘pagão’ de Blambangan” –; e Manuel de Elvas e o irmão Jerónimo Valente estabeleciam residência na capital do reino. Seriam muito bem recebidos pelo rei, que lhes autorizou a construção de uma igreja.

Ao longo de quatro anos Manuel de Elvas conseguiu baptizar seiscentos súbditos do reino de Blambangan, incluindo dois membros da família real: pai e filho. Ao primeiro foi-lhe dado o nome de António; ao segundo, Pascoal. Também o trabalho missionário em Panarukan deu os seus frutos, logrando os padres a façanha de converter um primo do rei. Foi assim o Catolicismo ganhando prestígio, contribuindo para tal, decerto, o muito badalado baptismo dos parentes do rei que tanto impressionara a população. Ademais, os ensinamentos cristãos só podiam ser apelativos, pois totalmente refutavam o cruel sistema de castas. Porém, a partir de meados da década de 1590, inicia o rei de Blambangan um processo de hostilização em relação à presença dos portugueses e do Cristianismo. Isto, devido à proximidade dos missionários à mãe do rei que, nessa altura, se tornara sua rival na continuidade de ocupação do trono real.

Para agravar a situação, em 1599, o reino era atacado (e, no processo, derrubado) pelas forças do duque de Pasuruan, recentemente convertido aos ensinamentos de Maomé. Os portugueses e os nativos cristãos tornaram-se desde logo no alvo preferencial a abater. No calor da refrega, o próprio monarca, furibundo com o ousado proselitismo – e provavelmente de cabeça perdida, pois vivia antevia a sua derrota – expulsava os missionários e executava o neófito primo. Assim, de forma trágica, terminava a aventura cristã em terras de Blambangan.

Joaquim Magalhães de Castro

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