«A violência [do Estado Islâmico] não vem deste mundo»
A irmã Myri é uma monja contemplativa portuguesa que está há sete anos no Convento de São Tiago Mutilado, em Qarah, na Síria. Muito perto do centro do conflito com o auto-denominado Estado Islâmico, fala-nos das dificuldades do dia-a-dia e das atrocidades cometidas em nome de uma fé que serve como desculpa para esconder os verdadeiros motivos da guerra.
FAMÍLIA CRISTÃ – Como é que viu evoluir a situação na Síria ao longo destes anos?
IRMÃ MYRI – Quando cheguei o País era pacífico. Diziam que era um dos países mais seguros do mundo. Depois começaram a dizer que o Presidente era isto e aquilo, e é verdade que havia uma certa tensão, mas as pessoas viviam muito bem. Os hospitais eram gratuitos, a educação era gratuita, havia senhas de alimentação para as famílias, o Governo ajudava muito a população. Agora é o caos…
FC – Há outros interesses que ajudam a que esta situação se tivesse desenvolvido?
I.M. – Claramente. A guerra foi alimentada pelo exterior, ou talvez mesmo provocada pelo exterior. Houve alguns que incendiaram as diferenças que existiam. Antes, as pessoas viviam juntas. Cristãos, muçulmanos de todos os ramos, todos viviam juntos. Eram vizinhos, frequentavam as casas uns dos outros, havia muito boa convivência.
FC – Qual foi o momento em que percebeu que tudo ia correr mal?
I.M. – Foi na Primavera Árabe. O Islão foi utilizado como fósforo, houve gente que instigou a divisão, que uns se levantassem contra os outros. Mas esse não foi o único problema. Havia armas que entravam no País às escondidas, e sentimos que tudo isto foi um plano executado por gente de fora do País.
FC – O convento tem recebido muitos refugiados de todas as religiões por obrigação ou opção?
I.M. – Nós somos uma comunidade de monjas contemplativas, mas abertas à comunidade. O mosteiro é muito antigo e é uma referência na região. Acolhíamos muitas pessoas para retiros espirituais, ou para acompanhamento espiritual, em que as pessoas ficavam e usufruíam da vida da comunidade. Agora, com a guerra, tivemos de nos proteger porque nunca sabemos quem nos pode aparecer, mas há uma equipa que presta ajuda humanitária em toda a região e tem sido muito bem sucedida. Nós coordenamos essa equipa, mas não vamos ao terreno porque há muita gente interessada em raptar o estrangeiro para depois pedir dinheiro, para fazer pressão política…
FC – Mas recebem refugiados no mosteiro?
I.M. – Recebemos uma família com mais de vinte membros. Agora são menos, porque alguns conseguiram continuar a sua vida. Mas não podemos receber mais por causa da segurança. Somos estrangeiros e isso pode ser complicado, pode haver raptos, é preciso manter uma certa distância.
FC – Que histórias contam os refugiados?
I.M. – Histórias difíceis, muito difíceis… violência sem explicação… [pausa] violência que não vem deste mundo. Há uma força maléfica por trás disto tudo. Quem é que vem cortar cabeças e membros do corpo e colocar à porta dos pais?
FC – Como é que as pessoas reagem a esses massacres?
I.M. – Com a graça de Deus anda-se para a frente. É muito difícil, há muita gente traumatizada, muitos querem deixar o País porque não têm esperança. Os que ficam tem muita força interior, mas são traumas que não desaparecem… Há crianças que viram toda a família a ser degolada, mas que se conseguiram esconder. Como é que fica uma criança assim?
FC – O mosteiro esteve sob ataque do ISIS?
I.M. – Não era ainda o ISIS, eram milícias opostas ao Governo, como a Jabhat al-Nusra. Nós sabíamos que estávamos em perigo, fechámos as portas e mantivemo-nos lá dentro. Eles podiam ter assaltado o mosteiro, mas, por graça de Deus, não o fizeram. Esqueceram-se, não sei… (sorriso), só sei que não o fizeram.
FC – A população terá ajudado?
I.M. – Talvez. Nós tentamos manter relações neutras para garantir a nossa segurança. Hoje ajudamos pessoas de todas as religiões, não fazemos acepção de pessoas. Não são apenas os cristãos que estão a sofrer com este conflito, as minorias muçulmanas estão também a ser atacadas. Os alauitas, os muçulmanos moderados, estão a ser exterminados.
FC – O que motiva estes ataques?
I.M. – São ódios antigos que alguém reacendeu. O Governo tinha feito tudo para manter as boas relações… tenho medo de explicar isto, porque vão dizer que estamos envolvidos na política… mas naqueles países não é possível fazer uma democracia como aqui. Aqui temos valores cristãos de respeito, mas lá há muitas seitas e grupos tribais diferentes. É preciso uma mão forte para que não haja ódios acesos e se faça guerra. Há ódios antigos, de sunitas contra xiitas, e contra os alauitas… e se vem alguém que começa a por gasolina nessas brasas, que vão sempre existir, começam a fazer guerra uns contra os outros. É por isso que é preciso um Estado um bocado forte, para manter a ordem e a união. A realidade que eu conheci era de grande união e o povo sírio dizia que era contra estas divisões.
FC – Têm receio de ser obrigadas a deixar o mosteiro?
I.M. – Já tivemos várias vezes as malas feitas. Mas de todas as vezes sentimos que não era essa a vontade de Deus. Tínhamos as malas feitas, mas o perigo era maior no caminho… mais vale ficar aqui e confiarmo-nos a Deus.
FC – Alguém guarda o mosteiro?
I.M. – Temos um porteiro que vigia e mantém a relação com o exterior… e depois temos os anjos (risos).
FC – Como tem sido, ao longo dos anos em que esteve ali, a convivência com os muçulmanos da zona, antes do ISIS, e agora com a presença do ISIS?
I.M. – Tem sido muito boa. Os muçulmanos, as pessoas normais, estão muito tristes com o que está a acontecer. «Isto não é a nossa religião, não é o Islão», dizem-nos muitas vezes. Na verdade, tem sido uma época de evangelização forte principalmente nos corações. Eles vêem até que ponto pode ir a religião deles, a violência a que pode chegar. É uma boa época para evangelizar, porque os corações estão mais disponíveis e abertos.
FC – Vieram a Fátima com uma missão especial…
I.M. – A minha madre superiora aproveitou para vir comigo a Portugal para irmos a Fátima, porque Fátima tem sido o nosso escudo protector, por causa da Rússia. A Rússia tem sido o país que se tem levantado para proteger a Síria, e a Rússia foi consagrada ao coração imaculado de Maria, conforme foi pedido por Nossa Senhora. Viemos agradecer por isso e trazer três balas que martirizaram três cristãos na vila de Maalula, perto de nós, e deixámo-las nas mãos do Senhor Patriarca para que ele as coloque mais tarde em Fátima, com um pedido para interceder em memória de todos os cristãos que morrem.
FC – Essas balas foram-vos entregues por quem?
I.M. – As balas foram recolhidas pela minha madre superiora, que entrou na vila depois de o exército ter passado e ter “limpado” a vila. Foi a essa casa, onde uma testemunha tinha visto a profissão de fé desses mártires. Ela foi lá e recolheu todas as balas.
FC – Que profissão de fé foi essa?
I.M. – Houve alguns rebeldes que entraram na vila e começaram a gritar slogans contra os cristãos. «Vamos limpar a vila dos ímpios», diziam. Entraram numa casa e dispararam sobre uma rapariga que lá estava.
Ricardo Perna