ILHAS DE SÃO LÁZARO – 8

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 8

O rombo do emissário António

Também o insuspeito Diogo do Couto se debruçou longamente sobre a histórica viagem a Cebu, e o seu relato, inserido na “Década oitava da Ásia”, é, inúmeras vezes, coincidente com o do cronista anónimo e é até muito provável que neste se tenha inspirado. Começa por nos dizer Couto que Gonçalo Marramaque se inteirou da presença dos espanhóis em Cebu quando estava ainda “na barra do Bornéu”, ou seja, no actual Sultanato do Brunei. O autor do “Soldado Prático” também nos fala de Pêro da Cunha, embora o pinte de cores sombrias. Fora atribuída ao galhardo português a responsabilidade de antecipadamente anunciar a chegada da armada de Marramaque ao reino de Ternate, só que este, ao encontrar na ilha um comerciante ali residente, de seu nome Henrique de Lima, confidenciou-lhe, no decorrer de uma mera conversa informal, uma das missões secretas do seu superior, e que era dar voz de prisão ao rei Aeiro e levá-lo a ferros para Goa. Lima, certamente olhando a interesses muito seus (personifica, na atitude e perfil, o típico homiziado), partilhou de imediato a inconfidência com o soberano de Ternate, de quem era muito amigo. E assim, conclui Couto, “o dia em que Gonçalo Pereira surgiu no porto de Talanganu logo se embarcou el-rei em algumas caracoras com os seus filhos”.

Concluídas as tarefas que o levara às ilhas das especiarias, Marramaque tratou de enviar o emissário António Rombo, “em duas caracoras”, com um recado para os espanhóis estacionados em Cebu e de lá trazer notícias acerca da sua real capacidade; se mantinham ou não contactos com os de Nova Espanha (i.e, México); se sabiam o caminho de regresso para lá, etc. Em má hora o fez, pois o dito António, por inabilidade ou interesse próprio – era “tão rombo de engenho, como da alcunha”, comenta acintosamente Diogo do Couto – não soube apalpar o terreno onde se movimentava, “como convinha”, nem foi discreto no modo como se comportou. Como resume o cronista, “em vez de aproveitar, prejudicou”, até porque mostrou aos pilotos castelhanos uma carta de marear que os deixou maravilhados, e seria graças a ela que puderam, por fim, inteirar-se das rotas da China, do Japão e de todo aquele arquipélago. Couto diz-nos, a propósito, que isso da carta de marear era “cousa que eles não sabiam e compraram por muito, por que tudo lhe o Rombo deu por tão pouco como foi o da sua ignorância”, uma frase de certo modo ambígua que nos mostra um emissário, além de ingénuo, traidor, pois é bem possível ter ele negociado o valioso e secretivo pergaminho. Se por ele conseguiu bom preço ou apenas dez reis de mel-coado, não o iliba da autoria de um acto de lesa pátria que nessa época se pagava com a própria vida.

Diogo do Couto, em jeito de conclusão, naquele tom mordaz que o caracteriza, lança certeira atoarda a uma pecha muito nossa, ainda, infelizmente, bastante actual: “e por aqui se verá quanto dana buscarem os viso-reis e capitães homens seus validos e sem as partes que convém para os negócios que mandam tratar, só a fim de os honrarem, e eles ficam os desonrados; e o rei desacreditado”. Pois é: o País continua, ao fim de todos estes séculos, a deixar nas mãos de gente incompetente e corruptível os mais diversos assuntos de supremo interesse. Quanto ao insignificante António, “que negociou tão rombamente”, regressaria à presença do desprecavido Gonçalo sem novidade alguma. De mãos vazias e praticamente às cegas ensaiaria nova partida, pois então, o desventurado capitão-mor, sendo forçado a uma arribação na ilha do cravo de Bachão de onde solicitaria ao capitão de Malaca, D. Leonis Pereira (que acabara de sair vitorioso de uma campanha no Achém), o envio de homens e munições para o ajudar naquele que se adivinhava ser uma tarefa complicada.

Em Malaca estanciava Simão de Mendonça, regressado havia pouco do Japão, que com os seus 250 homens se dirigiu de imediato ao encontro do comandante minhoto. Este, retornara a Ternate, onde “reduziu à obediência alguns alevantados” e esclareceu uma série de mal entendidos, aproveitando o interregno para enviar o emissário Baltazar Correia, “numa das galeotas de Mendonça”, com recado aos reis de Bachão e Tidore, rogando-lhes que os acompanhassem na jornada, “pois eram amigos do Estado [da Índia]”. Responderam estes sem delongas ao solicitado e vinte dias depois juntavam-se todos em Ternate onde fecharia a conta da “fantástica” armada (fantástica, pois os homens de armas que a compunham não chagavam às três centenas), as mencionadas quinze caracoras do rei de Ternate que, como bem lembra Couto, “foi-se na volta do Macasa [Macassar ou Macaçar] a roubar, porque todos estes malucos são grandíssimos ladrões”. Pelos vistos, as coisas não correram de feição a Babu, pois por lá perdeu algumas centenas de homens, vendo-se obrigado a recolher à casa paterna, sem glória nem saque. Tendo em conta o peso historiográfico da obra de Diogo do Couto, juntamente com João de Barros, o cronista que mais nos merece consideração em termos de rigor e veracidade, podemos concluir que os dois emissários mencionados no apontamento de António Pinto Pereira, de seus nomes “António Lobo” e “Baltazar de Sousa”, correspondem, na verdade, às figuras de, respectivamente, António Rombo e Baltazar Correia, personagens, estes sim, mais verosímeis, até porque o tristemente famoso António Rombo (cujo apelido podia ser Lobo, e “Rombo” simples alcunha) é também mencionado por Gabriel Rebelo, cronista coevo e profundo conhecedor daquelas paragens.

Joaquim Magalhães de Castro

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