A Teologia da Libertação – I
Não é um cisma, nem uma heresia, não é sectário nem apela a retorno às origens de forma tão doutrinária ou até radical. Toda a gente fala dela, ou falava mais, mas nem sempre é bem explicada e contextualizada. A Teologia da Libertação, o que é então? Alguns chamam-na também de Libertação da Teologia, mas centremo-nos na sua essência e conceitos, génese, história e desenvolvimento. A Teologia da Libertação é um movimento da Igreja contemporânea que engloba várias correntes de pensamento interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais, políticas e económicas. Pretende-se apartidário e neutro, mas nem sempre foi assim ou em alguns sectores ou regiões. Polémico, foi sempre, incómodo também, como fruto do tempo em que surgiu.
O século XX foi um tempo de grande intensidade para a História da Igreja Católica. Não foi o mais intenso ou o pior em termos de sofrimento da Igreja, foi difícil como tantos outros, pleno de desafios como muitos, foi uma jornada longa mais de travessia de tempestades, provações e crises, como tantos nestes dois mil anos de história. O século XX foi sim o século em que o tempo começou a “andar mais depressa” e a vertigem do progresso se fez sentir mais. Foram também muitas as inovações e transformações internas na Igreja, mas também as que vieram de fora. Frente ao crescimento de outras religiões cristãs e também do Islão, além do ateísmo, do agnosticismo e dos deísmos cristãos, os católicos procuraram modernizar-se para chegar mais perto dos seus fieis. Muitos foram detectando as muitas barreiras que se erguem perante essa aproximação, criando desvantagens relativamente a outras religiões, mais adaptáveis e teoricamente mais “abertas” e progressistas. Algumas tradições de séculos, como a celebração das missas em Latim, foram contornadas, ou mitigadas na sua rigidez aparente, ou na dificuldade que existia em se adaptarem aos novos tempos. Neste contexto, que explicaremos de forma mais pertinente, na década das grandes revoluções sociais do século XX (os anos 60) tomou forma e ganhou impacto um novo movimento dentro da Igreja Católica, que conquistaria, principalmente, a América Latina: a Teologia da Libertação.
UM EVANGELHO SOCIAL
A Teologia da Libertação foi influenciada por três correntes de filosofia religiosa emergentes no pós-guerra (meados do século XX): o Evangelho Social, a Teologia da Esperança e a Teologia Antropopolítica. O Evangelho Social surgiu entre as igrejas norte-americanas, tendo sido expandido para a América Latina, como foi o caso do Brasil, por obra do missionário e teólogo presbiteriano Richard Shaull. Já a Teologia da Esperança, foi gizada pelo teólogo reformado Jürgen Moltmann. Por seu turno, a Teologia Antropopolítica teve como seus grandes expoentes o teólogo católico Johann Baptist Metz, na Europa, e o teólogo baptista Harvey Cox, nos Estados Unidos. De forma genérica e conceptual, podemos elencar estas três correntes de pensamento como a base teórica deste movimento religioso. Na associação ou confluência de todas estas ideias, foi publicada uma obra em 1965, “The Secular City” (“A Cidade Secular”), da autoria do referido teólogo da universidade norte-americana de Harvard, Harvey Cox, que causaria um grande impacto no pensamento religioso católico. Em suma, a obra no seu teor apresenta-se como uma contraposição à obra de Santo Agostinho, “A Cidade de Deus”, argumentando que no século XX a dualidade mundo terreno/mundo espiritual estava a ser superada pela dualidade mundo proletário/mundo burguês, numa óptica menos teológica e mais política. Muitos dos que leram a obra, logo vieram a terreiro defender a criação de novas comunidades cristãs. É bom recordar que se estava a concluir o Concílio Vaticano II (1962-1965), que insuflou novos ventos na Igreja e abriu caminho a uma mundividência em transformação e em resposta aos sinais dos tempos que eclodiam a velocidade vertiginosa e que era necessário acompanhar. Neste contexto eclesiológico, surgia esta tentativa de renovo que foi a Teologia da Libertação.
Esta nova filosofia cristã, chamemos assim, por ora, não se baseia tanto em uma interpretação eclesiástica da realidade, mas mais na realidade da pobreza e da exclusão. Os que lançaram as suas bases descreveram-na como uma interpretação analítica e antropológica da fé cristã. Mas, ao agregar várias correntes de pensamento cristão e não só, o movimento absorveu outros tipos de crenças, sincréticas principalmente, provenientes, por exemplo, do Umbanda e cultos afro-americanos, do Espiritismo, do Islão e até do Xamanismo. Apesar da internacionalização da Teologia da Libertação, foi na América Latina que despontaram os seus mais lídimos representantes e teóricos, como o sacerdote dominicano peruano Gustavo Gutiérrez, o antigo padre franciscano brasileiro Leonardo Boff e o antigo padre jesuíta uruguaio Juan Luís Segundo.
Na sua ontogénese, o movimento foi de imediato acusado de deturpar o caminho divino e foi também muito criticado por adoptar o marxismo, ou o socialismo, segundo alguns, como base ideológica. O padre Segundo, por exemplo, referia que «a sensibilidade da esquerda é um elemento intrínseco de uma teologia autêntica». Em teoria, nesta linha, apresentava-se a premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres, pelo que a Teologia, para concretizar essa opção, deveria usar também as ciências humanas e sociais.
Esta corrente teológica cristã, de marca conciliar e nascida na América Latina, teve o seu berço na célebre Conferência de Medellín, ou melhor, na Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada na cidade homónima na Colômbia, entre 24 de Agosto e 6 de Setembro de 1968. A Conferência foi convocada pelo Papa Paulo VI para aplicar os ensinamentos do Concílio Vaticano II às necessidades da Igreja na América Latina. A temática proposta foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio Vaticano II”. Foi o próprio Pontífice quem presidiu à abertura da conferência, naquela que foi a primeira visita de um Papa à América Latina, região então envolta em pobreza e conflitos sociais fracturantes, dominada por ditaduras militares combatidas por movimentos políticos e guerrilhas socialistas. Tiveram um forte impacto e repercussão os documentos sobre a Justiça, a Paz e a Pobreza da Igreja, ficando a Conferência de Medellín, à luz desses documentos, marcada pelas reflexões sobre pobreza e libertação. Mais do que adaptar o Concílio à realidade sul-americana, fortemente marcada pelo aspecto social, que se capilarizava no tecido religioso, a Conferência de Medellín procurou esboçar o rosto concreto que a Igreja na América do Sul deveria assumir para se converter num efectivo “sinal e instrumento de salvação” e tornar a Igreja como peça fundamental nos processos de transformação social na região. Nascia a Teologia da Libertação….
Vítor Teixeira