Legazpi versus Marramaque
Testemunhámos, a semana transacta, a prolongada refrega luso-castelhana na baía de Cebu que teria como desfecho a retirada de Gonçalo Pereira Marramaque, pois, perante tão pesada bateria de pelouros, não teve o fidalgo português outra alternativa senão dar meia volta e procurar ancoragem em local mais abrigado. Retrocedeu, mas não abandonou a bulha. Uns dias depois, somava nova vitória a parte castelhana ao capturar o batel português que fora a terra fazer aguada e lavar um amontoado de vestuário avulso. Afirma o cronista António Pinto Pereira que, “depois de terem repartido entre si os escravos e a roupa”, puseram fogo ao batel e, volvidos uns dias, mandaram de regresso à nau capitânia, “bem agasalhados”, os cinco portugueses capturados.
No entanto, apesar das aparências, tudo não passava de uma cilada. Os prisioneiros mais não eram do que um isco para os espanhóis se apoderarem de “mais alguns soldados e escravos”, tendo no processo matado, “com uma arcabuzada”, o mestre do galeão do capitão-mor. O apresamento de um batel “carregado de arroz com certos negros e quatro castelhanos de baixa sorte”, entre os quais um Benevides que tempos mais tarde regressaria a casa num dos navios da Carreira da Índia, foi a imediata resposta portuguesa. Devidamente acoitados os galeões e as fustas, Marramaque ordenou que se dirigissem para a costa todos os barcos de remos que trouxera consigo, e neles enviou trezentos homens, a quase totalidade do contingente militar da armada. Era habitual os portugueses recorrerem a este tipo de embarcações, longas e estreitas, conhecidas localmente pelo nome de caracoras.
Ciente da debilidade lusitana, Miguel López de Legazpi aprontou novos canhões, desta feita ainda mais próximos da linha do mar, e com eles redobrou a trovoada. Do nosso lado, organizavam-se os capitães Beja, Menezes e Mendonça, os dois últimos à frente de galeões “velhos e fracos”, optando por destacar, o nosso cronista, a figura de Pêro da Cunha, que a Marramaque sugeriu um esquema de disposição dos navios que permitiria com sucesso suster o ataque inimigo. Enquanto isso, sem medo, movimentava-se este Cunha pelo convés, de peito aberto às balas, num só fôlego estratega, artilheiro e homem do mar, aconselhando os bombardeiros que incansavelmente ripostavam o fogo hostil, e desferindo ele próprio alguns dos tiros certeiros que chamariam a atenção dos da banda de lá que logo o elegeram como alvo preferencial, tanto mais que de sobremaneira o identificava a “turca de grã” que trazia na cabeça. Pediram-lhe os seus camaradas que a tirasse, mas Cunha recusou alegando ser “sinal de fraqueza” livrar-se de tal insígnia. Graças ao seu ardil alguns dos pelouros da armada lograram derribar uma ou outra peça plantada no forte de San Pedro, mas Marramaque sabia bem estar perdida aquela oportunidade única de ter deixado o seu nome inscrito para sempre nos anais do arquipélago. Tivesse ele agido com a necessária rapidez, e sob o manto de el-rei D. Sebastião teria ficado toda aquela região. Falho de recursos, e porque a monção ia adiantada, Marramaque decidiu então recolher a gente que tinha no terreno e presto tomou o caminho de regresso às Malucas.
Dessa batalha esquecida resta, a julgar pelo seu aspecto e dimensão, o enigmático canhão esboroado que agora aprecio acamado entre fileiras de vasos de flores e bonsais no interior desta fortaleza que, como informa um letreiro esculpido em alto-relevo à entrada, foi restaurada “en el Anno 1833”, sendo alcaide-mor da cidade “Don Manuel Romero”. Este rocambolesco episódio que poderia ter alterado a geografia política da região mereceria também a atenção de um cronista anónimo, certamente membro da expedição. Este refere, por exemplo, que na sua primeira tentativa de chegar a Cebu, Gonçalo Marramaque se perdera naquele rosário de ilhas e fora obrigado a regressar às Malucas, onde solicitaria o auxílio do rei de Ternate – o Aeiro das crónicas coevas –, que “de mui boa vontade” lhe forneceu quinze caracoras, indo seu filho, “por nome Babu”, a comandar uma delas. Na verdade, o muçulmano Aeiro, pretendia com o gesto enfraquecer os portugueses, afastando-os dos seus domínios. Diz-nos ainda o anónimo que a segunda tentativa de Marramaque teve sucesso porque este levava consigo pilotos locais, realçando depois o carácter e a nobreza do português, “tão bom fidalgo e tão bom cristão, bem inclinado, e amigo de Deus”, que pudera ter capturado esse “forte de triângulo” e a todos ter “debaixo da sua mão”, mas optara por não o fazer, crente na (falsa) boa-fé dos castelhanos. Ao mencionar o incidente do batel apreendido, o escriba fantasma garante que aqueles mataram “todos os portugueses e os lascares”, de quem o capitão-mor sentiu muito, pois deles “tinha muita necessidade”. Ripostara Marramaque, tempos depois, ao atacar um batel vindo da ilha de Panay, mas não liquidou nenhum dos espanhóis, “antes a todos tratou honradamente”. Mais informa o anónimo “que todos os dias do mundo”, morria muita da gente da armada, “de bere-bere”, e tal foi a razia que o capitão-mor decidiu contra-atacar, com o resultado que se conhece. A desilusão que acompanhou o capitão português até às Malucas, estendia-se também ao rei de Ternate porquanto as caracoras que ele lhe prometera, em vez de o acompanharem tinham rumado a sul, à ilha de Buton e a Macassar, nas Celebes, pouco tempo após o início da jornada.
Em jeito de conclusão, informa o relator desconhecido que chegou Marramaque a Ternate “com menos trezentos portugueses do que os que levara”, e isto, sem contabilizar os lascares e escravos mortos, e ainda o esbanjamento de provimentos. Em terra, informado dos acontecimentos, rejubilava Aeiro dizendo aos filhos que nada temessem, porque, afinal, a armada dos portugueses não passava de “uma armada de pau”.
Joaquim Magalhães de Castro