CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXV

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXV

O Feneísmo

Relacionado com o Sedevacantismo e a sua derivância conclavista, vamos hoje abordar o Feneísmo (ou Feeneyismo), uma corrente espiritual que muitos consideram uma heresia. O termo deriva do pensamento tradicionalista de um jesuíta norte-americano, o padre Leonard Feeney SJ(1897-1978), o qual tinha uma visão muito própria do dogma “Fora da Igreja não há salvação” (“Extra Ecclesia Nulla Salus”), quando afirmava que os baptismos de sangue e de desejo são “inovações heréticas” e inúteis à salvação da alma, pelo que nenhum católico se irá salvar. O mesmo considerava a Igreja, por isso, como herética. E rematava com a sentença de que todos os que não estivessem baptizados devidamente (logo fora da Igreja) estavam condenados ao inferno.

Mas expliquemos a partir do baptismo católico. A Igreja desde sempre reconheceu três tipos de baptismo: de água, de desejo e de sangue.

O baptismo de água é o mais comum, que pode ser feito por imersão ou por infusão. A imersão é a forma mais antiga e conservada ainda em muitas igrejas orientais, pela qual o catecúmeno é mergulhado na água três vezes, símbolo da Santíssima Trindade, e para significar mais visivelmente essa morte e vida, onde se “desce” ao túmulo e se regressa à vida nova. A infusão é o derramamento de água na cabeça do baptizando três vezes, acompanhado das palavras: “Eu te baptizo (nome da pessoa), em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Depois temos o baptismo de sangue. A Igreja defende que as pessoas que morrem em razão da fé, os mártires, sem terem recebido o baptismo, porque ainda estavam em caminho de preparação, são baptizadas pela sua morte por e com Cristo.

Já o baptismo de desejo baseia-se na intenção de alguém em se baptizar, mas que terá sido impedido por qualquer razão e perdido a vida. É o caso, por exemplo, dos fetos que morrem prematuramente. O desejo dos pais de baptizarem caso tivessem nascido é válido e a criatura é considerada baptizada.

E quem pode baptizar? Os ministros ordinários para o efeito são os bispos, os sacerdotes e os diáconos. Em caso de necessidade, porém, a Igreja pode consentir que qualquer pessoa possa baptizar. As únicas condições é que tenha a intenção de fazer o que a Igreja faz quando baptiza e use a forma e as fórmulas da Igreja, ou seja, a água e a fórmula trinitária (“eu te baptizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”), que são as matérias do Sacramento, sem as quais este fica inválido. As palavras só podem ser as do baptismo como Cristo instituiu.

O RADICALISMO DE FEENEY

Perante a sua negação destas formas de baptismo, os feneístas não são considerados católicos, mas sim hereges e um tipo de seita. Pretendem ser integristas e situar-se no Catolicismo Tradicional, onde muitos os refutam.

Os problemas dos feneístas procedem de interpretações muito próprias da Sagrada Escritura (na óptica do Protestantismo), além de uma falta de entendimento e escala em relação a importantes temas teológicos como as palavras “subjectivamente” e “objectivamente”, sendo pois hereges em matéria e hereges na forma. O drama do feneísmo assenta no dogma “Extra Ecclesiam Nulla Salus” – “Fora da Igreja não há salvação”, o que os faz negar crenças e dogmas católicos, como se viu.

O argumento para essa refutação baseia-se na sua interpretação, livre, das palavras de Cristo quando disse: «Quem não renascer na água e no Espírito Santo não poderá entrar no reino dos céus». Por isso só aceitam o baptismo de água e defendem que quem não o tem não tem salvação. Negam, nesse sentido, por exemplo, Dimas, o bom ladrão, que não foi baptizado mas que ainda assim lhe foi prometido o reino dos céus por Jesus. Negam também, ou omitem, que Nossa Senhora nasceu sem pecado original e sem necessidade de ser baptizada. Não aceitam argumentos em contrário, nestas discussões teológicas, e persistem na literalidade ou nas interpretações adaptadas, o que torna complexa a sua reintegração na Igreja. Os feneístas negam também os ensinamentos do Beato Pio IX no que toca à designada “Invencível Ignorância”, na qual se defende que Deus julga o subjectivo.

Foi há 72 anos, em Julho de 1947, que o padre Feeney (sacerdote havia vinte anos) anunciou esta sua descoberta da errónea interpretação da Doutrina da Igreja em relação ao baptismo e à salvação. Mas eram já frequentes os conflitos de Feeney com os superiores da Companhia de Jesus em Boston e com a arquidiocese homónima. Foi ordenada a reclusão do sacerdote no Holy Cross College, onde trabalhava e residia normalmente, atendendo que o mesmo cumpriria o voto de obediência a que está sujeito. Foi chamado pelo arcebispo de Boston, D. Richard Cushing, em 1949, para ser chamado e submetido à autoridade. Porém, desobedeceu. Na sequência disto, foi convocado pela Congregação do Santo Ofício para se retractar. Três vezes foi chamado, outras tantas desobedeceu.

Foi oficialmente excomungado a 13 de Fevereiro de 1953, por Pio XII, por se recusar a submeter à autoridade eclesial, embora os seus seguidores afirmem que a excomunhão não pode ser válida pelo facto de que o processo que conduz a essa pena não tenha sido canonicamente observado e cumpridos os devidos procedimentos. Mas sobreviria mais tarde a reconciliação. Aconteceu em 1974 (embora já desde 1972 houvesse aproximação), mas curiosamente sem alterar em nada a sua posição teológica. Foi, no entanto, absolvido da pena de excomunhão por Paulo VI, através de delegados especiais da Santa Sé para o efeito. Os seus seguidores, ou boa parte deles, com base nesta decisão papal, reconciliaram-se também com as suas dioceses locais. Podiam continuar a aceitar a doutrina “Extra Ecclesiam Nulla Salus”, mas como uma diversidade na interpretação da doutrina católica e das Escrituras. A maioria destes reconciliados aderiu à Missa Tridentina na sequência da possibilidade conferida pelo indulto papal “Ecclesia Dei” (“Igreja de Deus”) de 1988.

Quando Feeney morreu pediu que na sua lápide cemiterial se colocasse a frase do referido dogma, o que assim aconteceu. Foi sempre acusado de um exacerbado anti-semitismo, que era público e notório para muitos. Daí, talvez, advenha a simpatia e a ligação de alguns tradicionalistas e integristas com a comunidade feneísta. Estes continuam a sustentar que existe uma contradição entre o documento “Lumen gentium” do Concílio Vaticano II e declarações anteriores que interpretam como dizendo que os não-católicos são indiscriminadamente condenados. Acusam os signatários do Concílio Vaticano II como adeptos do indiferentismo, em que estavam mergulhados desde que o padre Feeney começara a pregar publicamente a sua interpretação do dogma referido. Muitos rejeitam ainda o que se disse acima deste sacerdote e da comunidade que se gerou em torno dele, muitos apenas consideram ter existido uma perseguição do arcebispo D. Richard Cushing, de Boston, a Feeney. Muito se diz mas pouca luz se faz.

Hoje os feneístas subsistem, ainda que definhando em número.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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