ILHAS DE SÃO LÁZARO – 5

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 5

O vestidor protector

Continuemos no interior do forte de San Pedro. Subamos agora à muralha e espreitemos o recheio do piso superior da casa da guarda, em cujas paredes abundam pinturas ilustrativas dos mais diversos episódios da história de Cebu: da colonização espanhola à ocupação japonesa, passando pelas lutas independentistas e a resistência contra o invasor ianque. No caso, há que dizê-lo, são pinturas de superior qualidade às da basílica. Prosseguem também aqui os relatos em forma de debuxo referindo a saga do Magalhães. Quanto a antiguidades, pouco há para ver além do estandarte da Espanha surripiado do gurupés de um dos navios da frota castelhana pelos marujos do almirante George Dewey durante a batalha da baía de Manila de 13 de Agosto de 1898 e doada à cidade de Cebu em 1993.

Igualmente protegidas por vitrinas, dão-se a apreciar algumas das cartas escritas por diversos membros da Katipunan, agremiação secreta e revolucionária que tinha como cartão de visita a sigla KKK – ou seja, em Tagalog, “Suprema e Venerável Associação dos Filhos da Nação”. Pugnaria a agremiação, ao longo de vários anos, pela independência das Filipinas, objectivo esse conseguido ao fim de algum tempo, embora fosse de pouca dura o prometido sol. Alvo de lutas internas pelo poder, o movimento acabaria por se desagregar e o seu principal mentor, Andrés Bonifacio, seria executado por ordem directa do mais directo rival e primeiro Presidente da novel república, Emilio Aguinaldo.

Obrigados a manter absoluto sigilo e a respeitar as regras pré-estabelecidas, cada novo membro da Katipunan sujeitava-se a um ritual iniciático de inspiração maçónica, e até o organograma hierárquico dessa organização se assemelhava ao das lojas de pedreiros-livres. O grupo tinha publicação própria, a Kalayaan(Liberdade), cujo primeiro número saiu em Março de 1896 e as suas páginas serviriam de alfobre a muitos dos literatos filipinos. É-nos ainda dado a apreciar no primeiro piso da casa da guarda o colete – ou vestidor, como lhe chamam aqui – de Hipolito Labra, conhecido katipunero e futuro autarca da província de Guadalupe, e uns quantos tipos de armas brancas utilizadas pelos revolucionários. Os katipuneros acreditavam que os vestidores – onde eram inscritas frases religiosas protectoras – os tornavam invisíveis; daí partirem para o campo de batalha brandindo os temíveis bolos (afiadíssimos punhais recurvados) sem receio algum.

Um dos quadros mostra-nos um pormenor bastante realista da batalha de Três de Abril, ocorrida em Cebu, como o nome indica, a 3 de Abril de 1898, no auge da revolução filipina. Mesmo ao lado, surge retratado um sangrento episódio da guerra que se seguiria, tendo como protagonistas os mesmos katipuneros, desta vez enfrentando o todo-poderoso Tio Sam, que não muito tempo depois os conduziria ao seu extermínio. Esse conflito causou a morte a pelo menos duzentos mil civis filipinos (fulminados sobretudo pela fome e as epidemias), embora algumas estimativas apontem para um total de um milhão de vítimas.

O conflito e a ocupação ianque que se seguiria alterou de forma radical o modo de vida e a cultura dos ilhéus, perdendo a Igreja Católica, nesse processo, o seu privilegiado estatuto de religião do Estado. O idioma inglês impor-se-ia como língua primordial da Administração Pública, do sistema educativo, dos negócios, da indústria e até, nas décadas a devir, nas relações entre a população instruída e as famílias da elite.

Um dos episódios mais infames da guerra filipina-norte-americana surgiu em jeito de retaliação face a uma emboscada rebelde a um pelotão da tropa invasora na cidade de Samar, e dele seria protagonista o general Jacob H. Smith que aos seus homens ordenou o seguinte: «Matem e queimem! Quantos mais filipinos matarem, mais satisfeito ficarei. Toda a gente capaz de usar armas e praticar actos hostis contra os Estados Unidos tem de ser neutralizada». Ou seja, na verdade, Smith decretava o massacre de todos os habitantes de Samar com mais de dez anos de idade! Entre os muitos relatos da época atente-se ao seguinte comentário de um soldado de Nova Iorque: «A cidade de Titatia caiu nas nossas mãos há poucos dias e agora dois pelotões ocupam-na. Ontem à noite, um dos nossos rapazes foi encontrado morto com o estômago aberto. De imediato, o general Wheaton deu ordens para que a cidade fosse incendiada e todos os nativos fossem mortos; e assim aconteceu. Nessa noite foram mortos cerca de mil homens, mulheres e crianças. Provavelmente endureci o meu coração pois exulto sempre que, ao ver alguém de pele escura, tenho a oportunidade de puxar pelo gatilho». Por sua vez, o cabo Sam Gillis escreveu: “Obrigamos toda a gente a recolher a casa às sete da noite, e só avisamos uma vez. Caso recusem, disparamos. Matámos mais de trezento nativos na primeira noite. Se de uma casa disparam um tiro, nós queimamo-la. E queimamos também as casas vizinhas. Disparamos sempre sobre os nativos, e por isso eles mantêm-se pacificados”.

Joaquim Magalhães de Castro

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