CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXIII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXIII

O sedevacantismo – I

O Concílio Vaticano II, ainda tão próximo de nós, por vezes parece estar bem longe, ou ainda por concretizar. Ou então, esquecido, anulado. As consequências do mesmo parecem hoje díspares, ou dicotómicas, sem que haja consenso em toda a Igreja. Mas a Igreja, historicamente pelo menos, é a súmula universal da diversidade e a expressão do múltiplo. Todavia, o Concílio parece ter gerado múltiplos descentrados, ou seja, desviados do caminho que se pretendeu traçar e seguir. Dentro da órbita tradicionalista, são vários os múltiplos, embora todos apontem para um objectivo: combater e apear o Concílio. Uma das derivações tradicionalistas do Concílio é o sedevacantismo.

Acima de tudo é uma teoria ou uma corrente, um fenómeno dir-se-ia. É uma das consequências mais estranhas da crise pós-conciliar. Mas então o que é o sedevacantismo? Em suma, é a teoria dos que pensam que os Papas pós-Concílio Vaticano II não foram realmente Papas, ou não são, no caso do Papa Francisco. A Sé está vacante – em Latim, “sede vacante” – ou ocupada de forma incorrecta. Assim, afirmam que a Cátedra de Pedro está desocupada.

Trata-se de uma posição teológica minoritária dentro do Catolicismo Tradicionalista, que defende a vacância da Santa Sé e que o Papa é, deste modo, um “impostor” ou um “falso Papa”. Recorde-se que a Santa Sé costuma estar vacante, mas não abandonada ou sem Governo, nos períodos entre a morte ou a renúncia de um Papa e a eleição do seu legítimo sucessor, devidamente eleito em conclave e proclamado “urbi et orbi”. Os sedevacantistas afirmam, contudo, que a Igreja Católica não tem actualmente um Papa que a governe e conduza, estando desta forma num permanente estado de “sé [sede] vacante”.

Os sedevacantistas são católicos tradicionalistas, maioritariamente, que recusando a Igreja que foi renovada no Concílio Vaticano II (1962-1965) acabam por considerar que o Papa Pio XII, falecido em 1958, foi o último pontífice romano legítimo. Alguns ainda aceitam a legitimidade do seu sucessor, o Papa João XXIII, mas rejeitam Paulo VI e seus sucessores, que consideram como apóstatas, pois abraçaram a heresia do modernismo e não estão de acordo com dogmas já definidos de forma infalível pelo Magistério da Igreja Católica ou pela própria Revelação Bíblica, sendo por isso impossíveis de serem reformados. Há ainda uma facção que renega o Papa Francisco, que acusam de ter caído de forma pública e manifesta em heresia formal, perdendo a sua autoridade pontifícia. Aceitam os Papas até Bento XVI, ainda que com relutância, mas rejeitam liminarmente o Papa argentino, que consideram ilegítimo e herege, chegando alguns a considerá-lo um anti-Papa. Não há sequer concordância entre os sedevacantistas em relação a Francisco, pois alguns aceitam-no, mas apenas parcialmente, ou seja, não o aceitam formalmente. Mas não se pode identificar estes críticos sedevacantistas do Papa Francisco com o grupo conservador dentro da Igreja que o critica, note-se, bem como é importante esclarecer que nem todos os tradicionalistas são sedevacantistas ou críticos acérrimos do actual Pontífice.

OS ERROS DOS PAPAS

É uma teoria radical, que decapita no topo da hierarquia a Igreja pós-conciliar, o que pretende ser pois uma forma de recusa liminar das reformas do Vaticano II. O cenário no qual se proclama esta teoria é o de crise da Igreja, única forma de legitimação destes movimentos. Como causa desse cenário, os sedevacantistas acusam os Papas de negligência e erros formais, ao ensinarem e propagarem erros como o ecumenismo, a liberdade religiosa, a colegialidade, etc. Para este movimento, os Papas genuínos não poderiam jamais criar um cenário de crise assim, pelo que por isso não podem ser considerados verdadeiros ou legítimos.

O zénite das críticas sedevacantistas é sempre o Papa. Alguns consideram a sua posição, principalmente a de Francisco, como uma “mera opinião” e consentem em receber os Sacramentos de padres não-sedevacantistas, enquanto outros, mais radicais, transformam tudo em matéria de fé e recusam assistir a missas nas quais o presbítero ore pelo Papa. Talvez este seja o único ponto comum entre todos os sedevacantistas, o de que não se deve rezar pelo Papa em público.

A principal dificuldade do sedevacantismo é explicar como é que a Igreja pode continuar a existir de uma maneira visível (pois recebeu de Cristo a promessa de que duraria até ao fim dos tempos) estando privada da sua cabeça, ou seja, em sede vacante… Aqui surge, no movimento, uma derivação, os autoproclamados sedeprivacionistas (que se opõem aos que consideram a sede vacante de forma total), com uma solução muito subtil para essa “decapitação” papal: consideram o actual Papa como validamente eleito, mas argumentam que não recebeu a autoridade devido a um obstáculo interior (a heresia). Assim, de acordo com essa teoria, o Papa é capaz de agir de algumas maneiras para o bem da Igreja, como na escolha dos cardeais, por exemplo, mas não é real ou formalmente Papa.

Os críticos desta fórmula intermédia, referem que a solução que ela preconiza não é baseada na Tradição. Alguns teólogos já teriam examinado a possibilidade de um Papa herege, mas nenhum antes do Concílio apontou para uma teoria que desse alguma legitimidade ao Papa. Segundo a tradição teológica, esta mesma teoria também não resolveria a principal dificuldade do sedevancatismo: saber como é que a Igreja continua visível e activa se o Papa, os cardeais, os bispos, etc., estão privados da sua “forma”, sem a devida autoridade. Uma das críticas a esta corrente sedeprivacionista é a de que ela incorre numa solução com “graves defeitos filosóficos”, pois supõe que a cabeça pode existir e agira sem autoridade. Do outro lado, defende-se que esta solução é a única que pode preencher as exigências dos dogmas católicos e, ao mesmo tempo, não nega a realidade, pois garante a permanência da sucessão material de São Pedro, embora sem esconder os erros dos últimos Papas.

Os sedevacantistas são cismáticos? Impõe-se a pergunta, logo a resposta: não são assim considerados, pois não negam o poder de jurisdicção do sucessor de Pedro. Apenas dizem que este ou aquele Papa, ou todos desde Pio XII, não o são de todo ou não são formalmente. E serão, por outro lado, hereges? Também não, pois não negam nenhuma verdade de Fé. De certa forma, pode-se dizer que os sedevacantistas são católicos que aderiram a um erro teológico com consequências graves. Do ponto de vista litúrgico, os sedevacantistas têm algumas particularidades litúrgica, usando, de forma geral, as rubricas de São Pio X para o rito romano tradicional na celebração da Missa, dos outros Sacramentos e para o Ofício Divino. E como se formaram do ponto de vista institucional? É o que veremos na próxima semana.

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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