ILHAS DE SÃO LÁZARO – 29

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 29

O “mercador” Jerónimo de Angelis

Muito do conhecimento do povo ainu e suas tradições deve-se aos escritos dos missionários jesuítas do início do século XVII, sendo atribuído o crédito oficial de “primeiro europeu” a visitar a ilha onde os ditos habitam ao jesuíta siciliano Jerónimo de Angelis. Ali chegou em 1618 – ou seja, quase meio século após a passagem de João da Gama e seus homens – e durante os dez dias de permanência debuxou um interessante mapa da região sobre o qual mais adiante falaremos.

Depois do percurso habitual – Lisboa, Goa, Malaca – em Macau Angelis estuda durante doze meses, seguindo depois, em 1602, para o Japão onde permanece oito anos, na missão de Fushimi, sul de Quioto, sendo depois encarregado de animar uma nova missão em Sumpu (hoje Shizuoka), juntamente com Edo (Tóquio), centro operacional do xogunato de Tokugawa Hidetada.

Em 1614 dá-se início à feroz perseguição aos cristãos do Japão; nos dez anos seguintes cairá por terra o trabalho evangelizador de décadas e obrigará à debandada da maioria dos missionários. Houve quem optasse por ficar, clandestinamente, como Jerónimo de Angelis. Em 1615 vê-lo-emos no Norte do Japão, onde o Cristianismo era ainda tolerado, participando na missão de Tohoku, liderada pelo franciscano Luis Sotelo. Em tempo de perseguições, e em nome de um objectivo comum, as ordens religiosas puserem de parte as habituais rivalidades…

O frade espanhol, após quatro anos de aprendizagem de Japonês em Manila, partira para terras do Sol Nascente e aí caíra nas boas graças do senhor feudal Date Masamune, que tolerava o proselitismo e permitia aos seus súbditos a adopção de uma nova fé, fosse essa a sua vontade. Expressou, inclusivamente, essa tolerância num decreto aplicável a toda a região de Sendai, por onde se estendiam os seus domínios. Escusado será dizer que as conversões foram um sucesso, embora não tardasse o alastramento ao Norte do édito anti-cristão, remetendo os padres para a clandestinidade. Duras eram as condições de vida; péssimos os caminhos, ladrões de monta, geografia acidentada, porém não recusavam nunca os missionários os pedidos de assistência dessas cristandades isoladas, viessem de neófitos montanheses ou de mineiros estabelecidos nos vales profundos.

Núcleos cristãos havia-os em Sendai, Miwake (hoje Mizusawa), Yamori (hoje Maezawa), Shizu, Ichinoseki, Sannoseki e Ishuzumori, e o porto de Akita funcionava, como na actualmente, como antecâmara marítima para a isolada Hokkaido, nome pela qual passaria a ser conhecida, a partir de 1868, a ilha de Yezo. Em Akita embarcaria Jerónimo de Angelis, disfarçado de mercador, em 1618, rumo ao porto piscatório onde em 1606 o samurai Matsumae Yoshihiro, às ordens do xogunato de Tokugawa, construíra o primeiro (e único) castelo da ilha (deu-lhe o próprio nome), pois cabia ao seu clã defender essa área e, por extensão, todo o Japão, “dos bárbaros ainu do norte”. Ironia do destino: esses mesmos ainus – temidos pelas suas flechas envenenadas – viriam a integrar o exército do samurai quando este se desentendeu com os senhores do Sul.

Acerca dos ainu, coligiu Angelis interessantes informações patentes em dois relatórios enviados a Roma. Diz-nos, por exemplo, que anualmente os “yezojin, de Menashi, no leste de Yezo” chegavam a Matsumae “com cem navios cheios de salmão e arenque” e um número indeterminado de peles de rakko, lontra marinha muito semelhante à zibelina. De Angelis fala de outras ilhas nas proximidades de Rakkojima habitadas por gente não tão branca ou hirsuta como os ainu, conhecidos pelos “longos cabelos até aos ombros.” Diz-nos ainda o siciliano, que “os yezojin de Teshio, norte de Yezo” traziam a Matsumae diversos tipos de mercadoria, salientando a “seda ornamentada e finamente tecida, semelhante aos panos chineses”. Ora, a região de Teshio situa-se na ponta ocidental de Hokkaido defronte à ilha manchu de Sakhalin.

Ainda na Sicília tivera Jerónimo de Angelis acesso a um mapa onde estava representada uma grande ilha ao Norte do Japão, mas parecera-lhe coisa tão irrealista que presumira ser imaginação do seu autor. O que não era verdade, de todo. O mapa em questão era, muito provavelmente, o Atlas de 1643 do conhecido cartógrafo português João Teixeira Albernaz. Mostra-nos, no Oceano Pacífico, a secção norte das “partes do Japão” e em cima a “Província de Yezo”, seguida de umas ilhas, como diz a legenda, “que João da Gama achou”, ou seja, as ilhas Curílias. Inspirado nesse atlas, Angelis representou a Terra de Yezo como “uma enorme ilha situada ao norte de Honshu e perto da Coreia ou do nordeste da China”, pois acreditava-se que estava ligada ao continente. Só na sua segunda visita, em 1621, pôde Angelis comprovar que estava, de facto numa ilha, devido às correntes marítimas e porque notara que os ainus, ao contrário dos tártaros, não tinham qualquer tipo de organização social ou política, concluindo, portanto, nunca ter havido contacto entre esses dois povos.

Joaquim Magalhães de Castro

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