ILHAS DE SÃO LÁZARO – 22

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 22

Nossa Senhora da Guia de Luzon

Na capela de Ermita, no bairro histórico de Manila, amontoam-se fiéis prontos a prostrarem-se aos pés da Nuestra Señora de Guia, porventura a mais antiga imagem mariana das Filipinas. Esculpida em madeira de molave (um tipo de palmeira), vestida com saia bordada, camisa e peruca adornada com uma coroa oferecida pelo Papa Paulo VI, aquando da sua visita a Manila em 1971, e enfeitada com uma série de joias presenteadas pelo arcebispo de Manila, D. Rufino Santos, a venerada estatueta mede tão-só cinquenta centímetros. Tal como acontece em relação a Nossa Senhora da Paz e Boa Viagem de Antipolo, invocam a Virgem de Ermita (assim é vernaculamente conhecida esta Nuestra Señora de Guia) inúmeros viajantes, sobretudo solicitadores de vistos na Embaixada norte-americana ali próxima.

De acordo com os “Anales Ecclesiasticos das Filipinas”, manuscrito do final do século XVII, a imagem foi encontrada no rescaldo da dura e sangrenta batalha que daria a Miguel López de Legazpi, a 19 de Maio, “dia da festa de Santa Potenciana”, de 1571, a posse da magnífica cidade de Manila. Com mais de quatro mil fogos, era então a capital da poderosa e afamada ilha de Lução, governada pelo sultão Solimão, nativo do Bornéu. Ao deambular ao longo da costa – conta a tradição local – terá um soldado de Legazpi deparado fortuitamente com a curiosa imagem por entre a folhagem de uma árvore. Aí viria a ser construído um templo de madeira onde ficaria resguardada a estatueta. Tentam os historiadores associar esta imagem à do Santo Niño de Cebú, alegando que aquela poderia ter sido oferecida aos senhores de Manila pelo rajá de Cebu. Tentadora a teoria, houvessem provas cabais de relações pré-período colonial entre os régulos de Cebu e os de Manila, o que não é o caso.

Na verdade, a conquista espanhola de Manila fez-se com a ajuda de guerreiros de Visayas, o que deita por terra qualquer suposta aliança entre povos de ilhas tão distantes e, até então, incomunicadas. Consta que Solimão de Manila teria afirmado peremptoriamente que nada em comum tinha o seu povo com “aqueles mercenários visayanos”. Há ainda quem, eivado de generosa dose de nacionalismo, veja na imagem de molave distintos traços orientais, prova que à escultura não seria estranho o engenho nativo, ou quiçá, talento de um qualquer artesão chinês, sendo naturalmente venerada como o eram tantos outros ídolos pagãos. Contudo, se bem escrutinarmos a Virgem de Ermita depressa constatamos que se trata, na realidade, de uma inequívoca representação católica romana da Imaculada Conceição. A questão que se coloca é: de onde terá vindo e por que razão era adorada muito antes dos espanhóis se apossarem de Manila?

Afastada a hipótese de ter integrado o lote de alfaias religiosas a bordo das naus da expedição magalhânica, podemos deduzir que ali tenha chegado pelas mãos de algum navegador português, quiçá pelas do próprio Pero Fidalgo, o único que os anais registam nestas latitudes, por volta de 1545, como vimos na crónica da semana passada. Convém lembrar que o culto a Nossa Senhora da Guia, padroeira dos navegantes, está profundamente enraizado na cultura popular de Portugal, país com uma longa e histórica tradição marítima. Na década de 1970, um historiador português informava os seus colegas filipinos da extrema semelhança entre as imagens presentes na Ermita e no nicho da singela Ermida de Nossa Senhora da Guia, em Macau. Juntamente com a fortaleza e o farol nas imediações é núcleo cunhado pela UNESCO como Património da Humanidade. Foi esta ermida macaense originalmente administrada por freiras clarissas, que ali residiram até à fundação do Convento de Santa Clara. Consta, numa lenda local, que esta imagem da Virgem Maria saiu da capela e estendeu o manto para evitar as balas inimigas aquando da tentativa invasora dos holandeses, em 1622. Em 1998, no decorrer de trabalhos de manutenção, foram postas a nu uma série de pinturas murais ocultas sob camadas de cal acumuladas ao longo de quase dois séculos. Os frescos revelados mostram-nos não só personagens e episódios bíblicos, como também elementos claramente orientais: morcegos, leões de pedra e bonsais. É a única capela existente no Sul da China com pinturas decorativas no interior, no caso bem representativas da dimensão multicultural de Macau.

Terá sido a imagem da Virgem de Ermita levada para Manila pelos missionários portugueses antes de Legazpi chegar em 1571 e reivindicar as Filipinas para a Coroa Espanhola? Sem quaisquer registos históricos difícil é chegar a definitiva conclusão. E para tentar encontrar algum tipo de resposta há que, obrigatoriamente, recuar ao período das Descobertas e à divisão do mundo entre Espanha e Portugal, consubstanciado pelo Tratado de Tordesilhas em 1494 e reforçado pelo Tratado de Zaragoza, em 1529. Com este acordo, a Espanha desistia das suas pretensões sobre as Malucas, vendendo a Portugal todo o “direito, acção, domínio, propriedade e posse ou quase posse de todo o direito de navegar, contratar e comerciar que o Imperador e Rei de Castela tivesse e pudesse ter nas ilhas, lugares, terras e mares de Maluco pelo preço de 350 mil ducados”. Num fundo, um tratado em que o Rei de Portugal comprava direitos que já lhe pertenciam. Quando Legazpi reivindicou o arquipélago da Espanha em 1571, os portugueses contestaram o acto invocando essa linha de demarcação invisível. Assim, a Virgem de Ermita, ou Nuestra Señora da Guia, mais do que venerada imagem, é distinto marcador da primazia lusa quanto à “posse” das Filipinas.

Joaquim Magalhães de Castro

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