O olhar de William Lessa
A mais oriental das ilhas Carolinas, Ulithi, na verdade um atol espaçoso, é a escolhida por William Lessa como a principal das “Ilhas de Gomes de Sequeira”, aquela onde os portugueses teriam estanciado. Com cerca de quarenta quilómetros de comprimento, de norte a sul, e 21 de largura na sua extremidade norte, compõem Ulithi cerca de trinta ilhotas, todas com recifes. Situada a nordeste da Passagem das Molucas, as características geográficas deste atol estão em conformidade com as indicações prestadas pelos cronistas portugueses, nomeadamente João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda. Além do mais, a enorme lagoa marítima inserta no atol oferece excelentes ancoradouros e são várias as passagens de água profunda e os canais navegáveis, contrariamente ao que acontece nas ilhotas vizinhas de Yap.
No seu “Diário”, Bernardo de Egui, piloto do Santo Domingo, barca que ali arribou em 1712, conta que os nativos ofereceram aos espanhóis “algumas tangas de fibra de bananeira”. Também o jesuíta Juan Antonio Cantova, fortuitamente aportado a Ulithi, em 1731, na companhia do confrade Víctor Walter e de um grupo de soldados e marinheiros espanhóis, relata numa missiva enviada ao seu superior que os homens do atol vestiam apenas um bajaque (tanga), “usado como uma toalha e tecido com fibra de banana”, e as mulheres “uma saia que chegava da cintura até os joelhos”.
Os “ulithianos” têm bastante prática na construção de canoas (e grande orgulho nelas, diga-se de passagem) pois durante décadas as fizeram para os seus senhores da vizinha ilha de Yap. Bernardo de Egui afirma que essas canoas eram muito parecidas com as das ilhas Marianas, enquanto Cantova faz-lhes referência, embora não as descreva.
William Lessa, como antropólogo que era, interessou-se pelas peculiares características antropomórficas dos locais, outrora assinaladas pelas crónicas coevas portuguesas que os apresentam como “gente quase branca”. Em 1947, num trabalho de campo, Lessa fez observações em 59 homens e caracteriza a sua cor de pele como “predominantemente castanha-clara”, havendo-a também de “tom castanho-avermelhado”, embora nenhum dos sujeitos apresentasse “tez castanha escura ou preta”, podendo tal diversidade sugerir gente miscigenada, precisamente o resultado da prolongada estada dos navegadores portugueses. O piloto Egui garante-nos ainda que os homens das seis canoas que vieram ao encontro do Santo Domingo apresentavam longas barbas, em consonância com o que vem descrito numa carta referente à viagem de Egui redigida por Martín de Urzúa e Arizmendi, conde de Lizárraga, o então governador das Filipinas: “Os índios são bem constituídos, a maioria deles de estatura alta e considerável compleição. Alguns deles têm cabelos como os dos mulatos; outros, cabelos longos e lisos como os judeus; e todos têm longas e grossas barbas”. Lessa comprovaria a predominância de cabelos ondulados, e em menor número de cabelos escorridos, embora não deparasse com relevante pelugem facial.
Outro dos testemunhos é o do jesuíta Gianpietro Maffei, latinista conceituado e tradutor para o Latim clássico da obra do seu confrade Manuel da Costa referente às missões jesuítas na Ásia, a “Rerum a Societate Iesu in Oriente gestarum”, publicada em 1571 – onde, de resto, encontrou a referência à chegada de Rocha, Sequeira e seus homens, a tão remotas paragens. Maffei especula acerca da forma de comunicação utilizada entre os europeus e os nativos, certamente a sinalética embora haja a possibilidade de terem recorrido a alguns vocábulos e frases do linguajar das ilhas Molucas, hipótese, aliás, já equacionada por Lopes de Castanheda e João de Barros. Após quatro meses, é normal que os visitantes tenham aprendido algo da língua dos nativos e vice-versa; nada indica que a gente dali entendesse o Indonésio, e muito menos, é claro, o Português.
No que se refere a nutrimentos, as referências a aves domésticas são poucas e passageiras, apesar de Lopes de Castanheda ter salientado a presença de “cabras e galinhas”. Estas últimas, pela observação pessoal de William Lessa, eram, em 1949, negligenciadas como fonte alimentar, assim como os seus ovos, o que não deixa de ser estranho. “As galinhas não são domesticadas, voando para cima das árvores quando delas nos aproximamos”, escrevia Lessa. Pelo contrário, todos os alimentos vegetais mencionados por João de Barros – rizomas e tubérculos – encontravam-se ainda presentes no cardápio dos “ulithianos”, equiparando-se a sua importância à do coco, sendo a banana – estranhe-se! – um alimento de relativa importância. Os tão comuns inhames não eram ali cultivados e a presença das batatas-doce devia-se, sem dúvida, a uma introdução tardia. O padre Cantova dedica apenas três frases curtas aos alimentos “ulithianos” na carta expedida em 1731 e referente à sua missão no atol, mencionando os cocos, “dois tipos de raízes que são de pouca importância”, e uma fruta que designou “alfuch”, talvez um tipo de banana. Não há evidência dos inhames terem sido, alguma vez, ali cultivados; João de Barros menciona, tão só, raízes que eram “como” inhames.
Joaquim Magalhães de Castro