A Teologia da Libertação – VI
A Teologia da Libertação caracteriza-se, na sua forma como no seu processo histórico, por duas marcas importantes: a primeira, a oposição que lhe foi movida, a nível político como religioso, entre outros; a segunda, a capacidade de abertura e mudança, mesmo na adversidade. São estas duas características que têm sido apontadas em geral quando se fala deste movimento eclesial nascido nos anos 60, como já vimos. A proposta de diálogo com o mundo e com outras abordagens teológicas foi um dos esforços permanentes dos teólogos da libertação nos anos 70, mergulhados num mundo de pobreza e opressão, em que se impunha, como dizia o padre Gutiérrez, “ver mais longe”…
Assim se manifestou a abertura no Encontro de Detroit, em 1975, quando o movimento galgou oceanos e continentes e se expandiu para fora das Américas, procurando o “Sul” pobre, nomeadamente em África e na Ásia. Criou-se a Associação Ecuménica de Teólogos do Terceiro Mundo, manifestando-se a passagem para além do horizonte católico, agora cada vez mais ecuménico. Para além da pobreza e da desigualdade, para lá do inferno político das ditaduras, outras formas de opressão entraram nos horizontes da luta do movimento: sobre as mulheres na sociedade machista do mundo de então; sobre os indígenas, então a ganhar consciência da sua identidade dos seus valores, culturas, as suas religiões e da situação difícil em que viviam, na ultra-periferia ou no gueto; também a opressão sobre os afro-descendentes nas Américas (com destaque para o Brasil, Colômbia…), bem como outras minorias (hispânicos no Norte…). A Conferência Geral de Santo Domingo, em 1992, plasmaria com efeito o reconhecimento dessas minorias – indígenas e afro-americanos – e apelava à abertura às suas culturas e à essência.
AS “TEOLOGIAS” DA LIBERTAÇÃO
Essa abertura conduziu a uma pluralidade de “teologias da libertação”, no sentido das diversas formas de opressão que existiam e na resposta do movimento a cada caso. Uma pluralidade que reconhecia uma unidade de base, cuja definição Dussel propunha como meta da Teologia da Libertação, “na qual se definem e analisam os problemas abstractos e os supostos de todas as diversas teologias da libertação”.
Jogou aqui um papel importante a globalização económica. A população pobre da América Latina foi das mais atingidas, conhecendo um aumento substancial do desemprego, criando um número crescente de “massas excedentes” de indivíduos. O desenvolvimento técnico e científico é o maior impulso dessa transformação sócio-económica no mundo, estando associado e aplicado em todos os processos de economia, da investigação e desenvolvimento à produção e distribuição de bens, até atingir o consumo. A todos os agentes dessa mudança económica eram-lhes exigidas mais e mais qualificações técnicas e científicas, o que na prática redundava num grande problema, pois a maior pate da população não as tinha, ficando assim grandes sectores da população excluídos desse progresso e da obtenção de uma melhor qualidade de vida. Pobres ou excluídos do sistema, sem capacitações ou formação, o seu número aumentou, tal como as suas carências. A estes excluídos do sistema somam-se os explorados (ainda que com trabalho…), ou miseravelmente pagos pelo seu labor, e o problema então piora mais. De repente, a classe média também começa a sofrer, nos anos ‘80, apesar das suas capacitações técnicas e profissionais, surgindo o conceito da precarização do trabalho, este que cada vez mais deixou de ser um valor seguro, pois as fusões empresariais ou as falências começam a atirar massas crescentes de trabalhadores para o desemprego. A categoria “pobre” é cada vez mais complexa e múltipla em termos de definição ou enquadramento, mas pior que tudo, é mesmo ser-se pobre e não ter vislumbre de melhoria. Muitos passam então a designar os pobres como “vítimas”…
O VATICANO E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
De forma oficial, a posição vaticana começou quando o Papa João Paulo II solicitou à Congregação para a Doutrina da Fé a elaboração de dois estudos (pareceres) sobre a Teologia da Libertação, os quais vieram a lume com os títulos “Libertatis Nuntius”, em 1984, e “Libertatis Conscientia”, em 1986. Nestes argumentava-se, em síntese, que, apesar do compromisso radical da Igreja com os pobres, não se via com bons olhos a disposição da Teologia da Libertação em aceitar postulados de origem marxista ou de outras ideologias políticas, postulados esses que não eram pois compatíveis com a doutrina, nomeadamente no que se refere a que a redenção só era possível de se alcançar com um compromisso político. Era então Prefeito da referida Congregação o antigo arcebispo de Munique e Freising (1977-1982) cardeal D. Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI entre 2005 e 2013), crítico assumido do movimento em estudo. Naqueles documentos, não deixou de apontar os “erros de algumas formas de teologia da libertação”, que basicamente eram os seguintes:
– do ponto de vista teológico, a análise marxista não é uma ferramenta científica para um teólogo que deve, antes de usar qualquer método de investigação da realidade, levar a efeito um exame crítico de natureza epistemológica que não se resuma apenas ao social ou ao económico;
– o marxismo é, além disso, uma concepção totalitária do mundo, irreconciliável com a revelação cristã, no todo como nas partes;
– tal concepção totalitária impõe a sua lógica e arrasta as “teologias da libertação” para um conceito de praxis que torna toda a verdade uma verdade partidarizada, ou seja, relativa a um determinado momento dialéctico;
– a violência da luta de classes é também uma violência ao amor de uns para com os outros e à unidade de todos em Cristo – ou seja, é uma concepção (a luta de classes) puramente estruturalista a legitimar a violência;
– dizer que Deus se faz história, e história profana, é cair num imanentismo historicista, que tende justificadamente a identificar o reino de Deus e o seu devir com um movimento de uma libertação meramente humana, o que está em oposição com a fé da Igreja;
– as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade, recebem na Teologia da Libertação um novo conteúdo como “fidelidade à história”, “confiança no futuro” e “opção pelos pobres”, o que na realidade lhes nega a sua (das virtudes) substância teológica.
As questões colocadas não acabam por aqui, como as dúvidas e depois a confrontação do movimento com alguns sectores da Igreja, nos últimos trinta anos…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa