Histórias do trono e do mar

As dores de parto mais intensas anunciaram sem equívoco que a criança estava para nascer. Só que a mãe, refugiada líbia, encontrava-se não no relativo conforto de uma cama de maternidade, mas a bordo dum desses barcos de fortuna que transportam desesperados, às centenas, de uma a outra margem do Mediterrâneo.

As contracções cada vez mais frequentes sugeriam o nascimento iminente do bebé. Só uns minutos mais, pedia aquela mãe angustiada, rodeada de gente curiosa ou indiferente, naquela travessia decisiva.

E a criança nasceu enfim, mas já em solo italiano! A Itália recebeu pois mais um dos seus cidadãos destituídos, sem identidade, sem passaporte e sem história. Excepto a dos outros.

Criança sem nome, espera-a provavelmente uma vida de pobre, uma infância de pobre, num mundo impiedoso para quem nada tem.

Quase à mesma hora, Charlotte Elizabeth Diana nascia. No conforto de um hospital londrino, rodeada da ternura de pais e avós e bisavós expectantes, ela a folhinha mais recente de uma frondosa árvore genealógica, com raízes penetrando vários séculos de História.

A menina do barco e a menina do trono algum dia terão sequer a noção da coincidência temporal dos seus nascimentos?

Bom, dir-se-á, esta é uma daquelas histórias da carochinha para suscitar emoções, sobre algo que é tão velho como o homem: o mundo de profundas desigualdades que fomos criando. Uns pobres, outros ricos. Uns poderosos e outros irrelevantes… Isso é história sabida. E depois?

Depois… os ingénuos continuam a imaginar um mundo mais igual, onde o sentimento de vizinhança virtual (na aldeia global) corresponda no mínimo… ao mínimo que a dignidade humana parece exigir. E o que os cidadãos hoje exigem é sentar-se no trono da igualdade de oportunidades, através de uma economia mais justa e uma cidadania participativa.

Neste sentido, os destinos como o de Charlotte só são relevantes porque se cumprem paredes-meias com os destinos como a da menina líbia, nascida nas margens da Europa.

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A tentação é grande de ver paralelismos ou disparidades, entre vidas humanas que nunca se cruzarão. E porquê tal tentação?

Porque temos consciência de que, no mesmo navio e na mesma viagem, o espaço é intransponível entre o porão a transbordar e os camarotes de luxo.

 

O menino, a mala e os sonhos

Se algum dia se fizesse a História Trágico-Marítima da fuga, aos milhares, de refugiados líbios e de pobres (de um pouco de todo o lado) para a Europa, através do Mediterrâneo, figuraria na lista das mais originais o episódio do menino marfinense, cuja presença foi detectada pelos funcionários da fronteira do enclave de Ceuta.

A mala era transportada por uma mulher marroquina que, paga para isso, tentava fazer passar a criança de oito anos de Marrocos para a Europa, onde era aguardada pelo pai, trabalhador em Espanha, creio.

E o menino dentro da mala, no contorcionismo incrível de que só um corpo de criança é capaz.

E daquela travessia de êxito improvável – como se veio a verificar – fica tão só a imagem do menino dentro da mala. Dentro da mala com seus sonhos de criança.

O menino só queria ir ver o pai…

 

O reverso da História

São histórias anónimas como estas que permitem compreender toda uma época. Neste caso, este nosso presente feito de tantas contradições.

Dou assim comigo a pensar que, para interpretar o mundo a partir das notícias que invadem televisões e computadores, todos os dias, a todas as horas, há que ter tempo também para ler o que parece não ser essencial. Isto, contrariando naturalmente a mentalidade do fast food mediático que nos persegue como droga… ou como soporífero.

É o pequeno relato de uma margem de página, é a fotografia quase por acaso colocada num canto, só para preencher o espaço que o texto permitiu. É o episódio sem heróis ou fim feliz, a narrar tão só este continuum que é a vida, com suas tonalidades de luz e de sombras.

São as estórias humanas dentro dos conflitos, como expressões de coragem e lealdade, generosidade e esquecimento próprio, por entre o cinismo calculista de certos políticos e militares. Ou agora, dos novos profetas de antigas e requentadas violências, a proporem o paraíso na terra, num solo encharcado do sangue dos infiéis.

Há felizmente tanta coisa ainda que escapa à mão poderosa do discurso oficial, da cerimónia oficial, do décor oficial, a que se tenta reduzir a pujança da vida, nas suas infinitas expressões.

Penso que é na literatura que se encontra a reserva natural desse contar-sobre-a-vida que funcionará no futuro como retratos do nosso presente. No grande livro do tempo, é preciso não saltar capítulos!

Imagino frequentemente o que será a História do nosso presente.

Como nos verão os vindouros? Como anões tornados desajeitados gigantes pelo poder da técnica que criámos, vamos criando e mal sabemos manejar?

 

Redes sociais, redes de vida

Resposta oportuna às crescentes necessidades de comunicação de segmentos mais isolados e solitários, como é o caso dos idosos (com os riscos inerentes à exposição de tal isolamento), as redes sociais constituem um universo precioso para sociólogos, politólogos, linguistas e outros -istas ou -ólogos que, se já não o começaram a fazer, depressa preencherão os arquivos académicos com teses de mestrado e doutoramento sobre o mundo fascinante da comunicação virtual. E do que ela traduz de aspirações e desejos, frustrações e esperanças, de quem a utiliza exclusiva ou parcialmente.

Pois é através das redes sociais que se contam agora as estórias que antigamente se contavam à mesa do café, ou ao serão, antes de a televisão liquidar o sabor bom de conversar, simplesmente conversar.

Carlos Frota

Universidade de São José

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