Travessia do Gibraltar
Era já de manhã quando deixámos Sevilha, pronta para a inauguração de várias linhas de eléctrico. De cara lavada, os americanos regressavam à cidade, passado meio século, tal como acontecera, ainda não há muito tempo, na cidade do Porto. Duas horas depois, com o rochedo de Gibraltar à vista, ouviria o António dizer:
«– Nem imagina o tráfego que ali vai. Como vivo no lado espanhol, onde as rendas são mais baratas, tenho de me levantar às seis da manhã para pegar ao trabalho às oito. Chego a esperar hora e meia na fila de controlo de passaportes».
De facto, Gibraltar, o The Rock, continuava a ser um local muito específico. Simultaneamente, dentro e fora do espaço Schengen, era o resultado de uma Europa a duas bitolas: a continental e a insular.
A empresa para a tomada de Ceuta, em 1415, instigadora do processo das Descobertas, levou seis anos a preparar e obrigou ao arregimento de um país com fracos recursos e uma população escassa e enfraquecida pela peste e as constantes guerras com a vizinha Castela. Até à sua concretização, o sigilo seria rigorosamente respeitado. De modo a divergir as atenções, espalharam-se inúmeros boatos e D. João I chegou a enviar um emissário para declarar guerra ao duque da Holanda, destacando, simultaneamente, um outro – este em missão secreta – para tranquilizar o holandês, informando-o da sua manobra de diversão. Entrementes, os navios portugueses, com o pretexto de uma viagem às repúblicas de Veneza e de Génova, entraram no Mediterrâneo, espiando, a partir do alto mar, as condições geográficas da faustosa cidade muçulmana. Isto – recorde-se – muitos séculos antes da invenção dos barcos pneumáticos, agentes 007 e seus sucedâneos.
Dava-se assim início à dita “política de sigilo” da época dos Descobrimentos, tão fervorosamente defendida e, sempre que necessário, rebatida pelo historiador Jaime Cortesão.
Hoje, volvidos quase seiscentos anos, o processo é bem mais simples, se bem que tenha as suas etapas de epopeia, como já se viu. Basta chegar, pois, até Algeciras, no extremo sul de Andaluzia, e daí apanhar um barco rumo a um dos três quinhões de território espanhol enganchados em solo africano. Uma “empresa” que não me custou a fortuna paga na altura pelo Portugal medievo, embora ficasse bem mais dispendiosa do que uma ida e volta Macau-Banguecoque num dos aviões da AirAsia.
20 Agosto de 1415 seria a data escolhida para mandar ao assalto uma armada composta por duas centenas de navios, alguns adquiridos no estrangeiro, tendo ao comando o próprio D. João I.
As armadas de hoje são outras. De meia em meia hora, ferries de diversas empresas cobravam, em média, 35 euros por trinta minutos de viagem – um preço verdadeiramente exorbitante – sendo que os residentes pagavam três vezes menos. Enfim, especificidades de uma Europa moldada por uma moeda única em crescente valorização. Agregado o valor dos bilhetes do autocarro e do ferry, a viagem ficou-me por 95 euros
Nos compartimentos hermeticamente selados, grupos de turistas de fim-de-semana misturavam-se com ceutis de ascendência árabe, berbere, espanhola ou até indiana e judia. Estas duas últimas, comunidades com significativa relevância no enclave. De entre os forasteiros havia a destacar uns dez motoqueiros checos devidamente equipados para a travessia do deserto, que tudo faziam para dar nas vistas. Antecipavam, um bom par de meses e alguns dias, o habitual Lisboa-Dacar, que nesse ano teria a sua última edição em terras africanas.
À saída do barco da zona portuária todas as atenções e máquinas fotográficas virar-se-iam para o árido rochedo de duas bossas com o perfil costeiro mais feio da Europa. Aconselhava a mulher, certo idoso brasileiro:
«– Grite! Este era o seu sonho de menina, não era? Então grite!».
A pequena Olympus estava lá para registar o brado, não de Ipiranga mas de Hércules, figura mítica grega responsável pela separação do extremo sul da Europa do extremo norte de África. Ou melhor dizendo, dos montes Abyla (Monte Hacho, em Ceuta) e Calpe (Gibraltar), que representavam os extremos do mundo conhecido, reunindo assim as águas do Mediterrâneo com as do Atlântico. Enfim, deixávamos uma das colunas de Hércules para irmos ter com a outra.
A única vivência comparativa com a histórica viagem de antanho, arquitectada e preparada pelo infante D. Henrique, era o baloiçar constante do barco, devido à forte ondulação. Motivo suficiente para os ocasionais enjoos, que dariam origem a cenas algo caricatas acompanhadas de algumas quedas aparatosas, mas sem consequências de maior. Eis o comentário final de um italiano sentado ao lado de uma matrona com ar de beata que olhava para todos como se todos lhe devessem dinheiro:
«– Sinceramente julgava que iria ser um trajecto suave, sem grandes percalços…».
Atracamos na costa norte de África num desses raros dias nebulosos, nada condizentes com os panfletos turísticos que tentam vender uma “Ceuta com 300 dias de sol por ano”.
Joaquim Magalhães de Castro