«Marinha brasileira é a fiel depositária da Escola Naval Portuguesa»
Henrique Alexandre da Fonseca, almirante na reserva, está à frente de uma revista ligada aos assuntos do mar chamada Revista de Marinha, projecto que subsiste «graças à carolice de inúmeros colaboradores» e da tenacidade deste militar algarvio.
Da sua vasta experiência profissional, Fonseca, em declarações a’O CLARIM, destaca uma inesquecível travessia do Pacífico Sul a bordo da fragata João Belo, o primeiro navio onde serviu. «Estava-se em 1970», diz. «Partimos de Lourenço Marques rumo a Macau, Timor e Austrália». Não esquece o vulcão de Karakatoa, «que explodira há um século», numa manhã com «uma magnífica luminosidade». Recorda com saudade as três semanas, «quase de férias», preenchidas com «caça, pesca e praia», passadas «na pacífica ilha de Timor».
E as dificuldades de uma travessia em alto mar? «Essas, já lá vão». Apesar da segurança dos navios modernos, Henrique da Fonseca admite que por vezes se vivem momentos de aflição. Mas é então que desperta o espírito de camaradagem, particularmente activo entre os marinheiros. Daí vem a expressão “estamos todos no mesmo barco”.
A conversa com Henrique da Fonseca continua, dias depois, na Praça do Comércio, provavelmente o mais mal aproveitado espaço histórico de toda a Europa. Nesse terreiro desembarcam milhares de estrangeiros por dia que ali ficam, pois não existe qualquer sinal que os elucide. E o acesso ao Tejo, ali à mão de semear…
Oportunidade para lembrar a ideia de fazer ali um grande Museu dos Descobrimentos, lançada pelo almirante Brito de Abreu, «meu amigo pessoal», e que tem sido recorrente nas campanhas autárquicas. «Na vereação da Câmara fala-se do assunto», comenta o almirante. «O problema é a já habitual falta de vontade política».
Este algarvio considera-se uma «pessoa normalíssima» com acrescido interesse, agora que chegou à reforma, pelas coisas da cultura. Está ligado à Sociedade de Geografia e à Academia da Marinha. Gosta de ler, «sobretudo livros de história e de economia», e de fazer longas caminhadas e sessões de ginástica.
Pai de sete, «quatro rapazes e três raparigas», Henrique da Fonseca é sócio empenhado na Associação Portuguesa das Famílias Numerosas. «Não é por minha culpa que a população portuguesa está a envelhecer», comenta.
Quarenta e três anos de carreira na Marinha de Guerra foram preparados no Colégio Militar e na Escola Naval, para onde entrou aos 16 e saiu aos 20, já como oficial. Esteve em todas as províncias ultramarinas e foi o último graduado a abandonar a Guiné, «estive lá exactamente até ao fim», só regressando a Portugal em meados de 1975.
Alexandre da Fonseca esteve associado, aqui há uns anos, às comemorações dos dois séculos de elevação a vila de Olhão (agora cidade) altura em que se pretendeu recriar uma viagem marítima que marcaria a história de Portugal no dealbar do século XIX, embora o episódio seja pouco conhecido Após a primeira invasão napoleónica, com a corte portuguesa refugiada no Brasil, eclodiu em Olhão uma insurreição generalizada contra os intrusos. E logo um grupo de revoltoso locais embarcou num caíque para dar a boa nova ao rei.
D. João VI é-nos habitualmente apresentado como um monarca medroso, hesitante, distante. E figura mal-amada ficou para a história. Tal como D. Carlos, outra das «vítimas de situações extremas» que colocaram o País entre a espada e a parede. O primeiro dos monarcas teve de escolher «de dois males, o inglês e o francês, o mal menor». Infelizmente, não nos podíamos dar ao luxo de nos mantermos neutrais. Como diz o almirante: «neutrais são os países fortes, que o podem ser, e não aqueles que apenas o desejam».
O segundo dos monarcas teve o «azar» de herdar o trono numa época em que o apetite europeu pelas colónias portuguesas, sobretudo da parte do ogre britânico, andava particularmente aguçado…
Sem querer estabelecer paralelos com duas realidades que distam uma da outra 100 anos, Henrique da Fonseca, que se assume como um «republicano moderado», acha que já é tempo de reabilitar a imagem dos dois monarcas. Mas concentremo-nos em D. João VI…
«Não se pode dizer que ele fugiu do reino, pois o Brasil fazia parte de Portugal. Era como se ele tivesse partido para os Açores ou para a Madeira», afirma o almirante, com toda a convicção.
Que D. João VI poderia ter regressado mais cedo ao reino ou enviado um dos seus filhos, essa é uma questão que se poderia discutir mas que não vem aqui ao caso. Considera até que esse foi «um acto necessário» e de grande pragmatismo. «Não se pode ficar à frente de um comboio em plena marcha», diz.
Na sua opinião, se a corte não tivesse largado do Tejo, «mais de 10 mil pessoas em mais de 50 navios», não só a dinastia tinha sido extinta, como o Brasil seria hoje uma manta de retalhos de pequenos países, tendo como língua oficial, muito provavelmente, o Espanhol.
Com a corte foi o nosso arquivo histórico, «que lá ficou», e algumas figuras ilustres que constituiriam a argamassa de uma entidade intelectual que, «aliada à banca e a uma série de instituições criadas na altura», proporcionariam o futuro ao novo país. O almirante dá um exemplo: «Pode dizer-se que actual Marinha brasileira é a fiel depositária da Escola Naval Portuguesa que só viria ser reinstalada no nosso país em 1830».
Joaquim Magalhães de Castro