Origens judaicas da pedra e das chaves
«Da mesma maneira Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não prevalecerão contra ela. Eu darei a ti as chaves do Reino dos céus; o que ligares na terra haverá sido ligado nos céus, e o que desligares na terra, haverá sido desligado nos céus» (Mateus 16, 18-19).
Os católicos acreditam que, com estas palavras, Jesus Cristo investiu Pedro com autoridade suprema na Sua Igreja. O Catecismo da Igreja Católica afirma, no ponto 881: “Foi só de Simão, a quem deu o nome de Pedro, que o Senhor fez a pedra da sua Igreja. Confiou-lhe as chaves desta e instituiu-o pastor de todo o rebanho” (cf. Mt., 16, 18-19; Jo., 21, 15-17).
Estudos recentes de alguns biblistas católicos mostraram que esta interpretação das palavras de Jesus pode ser atribuída a tradições judaicas. Entre estes estudiosos encontram-se Brant Pitre, especialista em Judaísmo antigo, e John Bergsma, que se debruça sobre os Manuscritos do Mar Morto.
As obras de Pitre incluem “Jesus and the Jewish Roots of the Eucharist: Unlocking the Secrets of the Last Supper (2011)” e “Jesus and the Jewish Roots of Mary: Unveiling the Mother of the Messiah (2018)”. Bergsma é autor de “Jesus and the Old Testament Roots of the Priesthood (2021)”.
Retirei as ideias deste ensaio de uma palestra do doutor Pitre sobre “The Jewish Roots of the Papacy” (Deep in History Conference of The Coming Home Network 2009, https://youtu.be/xl3pD4l0K5U?si=M8Yp7_d7Ri8djxYG), onde examina o culto judaico no Templo. Ele mostra que as palavras que Jesus proferiu em Mateus 16 (“pedra”, “chaves do reino”, “ligado e desligado”) podem ser melhor compreendidas tendo em mente essas tradições judaicas.
Para além do Antigo Testamento, Brant Pitre recorre a quatro corpos principais de textos judaicos antigos:
1. Mishna (compilado por volta de 200 d.C.) – uma colecção de tradições do antigo rabino, do Século I a III d.C. (algo como o Catecismo da Igreja Católica e o Código de Direito Canónico);
2. Talmud babilónico (trinta volumes – Séculos III a V d.C.) (como os Padres da Igreja);
3. Midrash Rabbah – comentário sobre as Escrituras (como a Bíblia de Navarra);
4. Targuns aramaicos – adaptações da Bíblia hebraica ao Aramaico (como o Leccionário) com esclarecimentos.
Examinemos duas das palavras usadas por nosso Senhor – “pedra” e “chaves” – e vejamos como os judeus as entenderiam.
1. “Pedra fundamental” ou rocha, em Hebraico, “Eben Shetiya”. Este alicerce é considerado sagrado não só no Judaísmo, mas também no Islamismo, onde é chamado de “Pedra Nobre”. Encontra-se no interior da Cúpula da Rocha, em Jerusalém, que foi construída no Século VII d.C., no que costumava ser o Santo dos Santos do Templo Judaico. As tradições judaicas defendem que a criação do mundo começou a partir desta pedra fundamental. Foi sobre esta pedra que colocaram a Arca da Aliança. Durante a invasão babilónica, Jeremias escondeu a Arca da Aliança (cf. 2 Macabeus 2, 1-7). Quando o Templo foi reconstruído, o sumo-sacerdote continuou a oferecer o incenso e a aspergir o sangue dos sacrifícios sobre a pedra angular (na ausência da Arca).
O Midrash Tanhuma explica a importância da pedra fundamental:
“Como o umbigo está situado no centro do corpo humano,
assim é a terra de Israel o umbigo do mundo…
situada no centro do mundo,
e Jerusalém no centro da terra de Israel,
e o santuário no centro de Jerusalém,
e o lugar santo no centro do santuário,
e a arca no centro do lugar santo,
e a Pedra Fundamental diante do lugar santo,
porque a partir dela foi fundado o mundo”.
Quando Jesus encontrou Simão pela primeira vez, deu-lhe um novo nome. “Então tu és Simão, filho de João? Serás chamado Cefas” (que significa Pedro) (cf. João 1, 42). Cefas é a forma aramaica de “pedra”.
«Da mesma maneira Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja» (Mateus 16, 18). Aos olhos dos judeus, Jesus estava a construir um novo Templo. E este seria construído sobre Pedro.
2. As chaves do reino, em Hebraico, “mafteah” (literalmente, um abridor). No Antigo Testamento, as chaves são um sinal de administração e de autoridade. São dadas ao primeiro-ministro, o segundo em comando do próprio rei. Estas chaves não eram apenas sinais de autoridade real, mas também de autoridade sacerdotal. Eram os sacerdotes judeus que guardavam as chaves do Templo. Quando chegava a altura de oferecer um sacrifício, o sacerdote em causa recebia as chaves. À noite, o sacerdote trancava as portas por dentro e dormia ali.
O livro do profeta Isaías narra como o administrador Sebna será destituído do seu poder (cf. Isaías 22, 15) e a chave será entregue a Eliaquim: «Naquele dia convocarei o meu servo Eliaquim, filho de Hilquias. Vesti-lo-ei com a tua túnica, cingi-lo-ei com o teu cinto, colocarei em suas mãos as tuas funções; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá. Porei sobre os seus ombros a chave da Casa de Davi: o que ele abrir ninguém terá o poder de fechar e o que ele fechar ninguém será capaz de abrir. Eu mesmo o fincarei como uma estaca em terreno firme; ele será para o reino de seu pai um assento de honra e trono de glória. Toda a glória de seus parentes, desde os mais famosos e importantes, até os mais anônimos e humildes, dependerá da sua pessoa: sua prole e seus descendentes; todos os seus utensílios menores, das bacias aos jarros» (Isaías 22, 20-24).
Aos olhos dos judeus, quando Jesus dá a Pedro as chaves do reino, está a conceder-lhe autoridade sobre a Sua Igreja, dando-lhe poderes para ligar e desligar. Tudo o que ele decidir será ratificado por Deus. O poder de ligar e desligar é mencionado na Mishna e no Targum.
Pe. José Mario Mandía