Domina, ut sit!

A Virgem do Pilar

São quase 4 horas e 30 da manhã. Em Saragoça, Espanha, já faz um pouco de frio, já estamos em 12 de Outubro, o Outono a começar. Bom, mas que importa o frio e a hora tão madrugadora para a multidão que se dirige e entra na Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Uma verdadeira imensidão de gente acorre de todos os lados para El Pilar, para a Solene Missa de Infantes, enchendo a Basílica. Assim começa o dia da festa em honra da Virgem do Pilar, o grande dia anual de Saragoça, mas não só, dada a extensão universal da devoção. Devoção, flores para a Virgem, “fiesta”, animação e cultura, tudo para a padroeira da vetusta cidade espanhola, capital de Aragão. Padroeira que é desde 2 de Janeiro de 1642, mas milenar é a devoção que a Virgem congrega.

A Virgem do Pilar é uma invocação mariana da Igreja Católica, muito antiga. A tradição rememora-a desde o ano de 40, quando a Virgem Maria terá aparecido a São Tiago Maior, precisamente em Saragoça, que então era cidade romana com o nome de Caesar Augusta, a antiga Salduie dos Iberos. Maria estava vivente ainda, à data, tendo aparecido em “carne mortal”, ainda antes da sua Assunção. Como sinal da sua aparição, deixou uma coluna, ou pilar, de jaspe (em cima da qual terá aparecido ao Apóstolo Peregrino), que passou a ficar conhecida como “o Pilar”, em torno da qual São Tiago e o primeiro grupo de convertidos da cidade construíram uma pequena capela, perto do rio Ebro, que banha a cidade, onde é agora a Basílica do Pilar.

Os documentos referem textualmente que São Tiago ficou uns tempos em Saragoça, entre as suas andanças hispânicas, criando o pequeno grupo de convertidos, que de dia lavravam na vinha do Senhor e à noite recolhiam-se para as margens do Ebro, para descanso. Numa fria noite de 2 de Janeiro de 40, o apóstolo ouviu “vozes de anjos que cantavam Ave Maria, gratia plena, e viu aparecer a Virgem Maria, em pé sobre um pilar de mármore”, estando ela viva. Pediu-lhe a Senhora que ali se erigisse uma igreja, com o altar em torno do pilar onde ela estava, prometendo que permaneceria naquele lugar “até ao fim dos tempos para que a virtude de Deus obre portentos e maravilhas pela [sua] intercessão por aqueles que nas suas necessidades implorassem o seu patrocínio”. Desapareceu então a Virgem. Mas ficou o Pilar. E logo ali se começou então a cumprir o pedido da Virgem, erigir a capela.

A tradição, como acima se relata, foi então sendo fixada, em particular pelo Papa Gregório I (Magno), que assim o atesta nos seus Moralia, sive Expositio in Job, tresladado depois num manuscrito, em 1297, que se guarda no Arquivo da Basílica do Pilar. Neste preciso século XIII teria já então começado a devoção mariana, nas peregrinações que se desencadearam junto do Pilar da aparição da Virgem. O sarcófago de Santa Engrácia em Saragoça atesta a devoção, com figuração da Virgem, tal como em 835, Almoíno, monge de S. Germain de Paris, se refere à Virgem do Pilar, à sua devoção e feitos milagrosos em Saragoça, onde vivera São Vicente, mártir.

Saragoça foi desde sempre uma das grandes cidades da Península Ibérica, a grande capital de Aragão, junto ao Ebro e não longe dos Pirenéus, fronteira natural com a França e a Europa Central, entre a Catalunha e Castela, a sul dos Países Bascos. Enfim, além da tradição romana e cristã, judaica também, muitos eram os povos que por ali passavam. Um deles conquistou toda a Península, em particular Aragão. Bem, toda a Península não, pois as Astúrias ficaram cristãs. Os conquistadores foram os povos muçulmanos provenientes do Magrebe, liderados pelos árabes, que impuseram um jugo dominador em Saragoça até 1118, quando a cidade foi reconquistada por Afonso I, o Batalhador.

Os cristãos emergiam de novo na cidade e logo o templo moçárabe do Pilar, ameaçando ruína e abandono, com culto incipiente devido à ocupação islâmica durante 400 anos precisos, foi reedificado e transformado numa traça românica, em obras que se estenderiam até ao séc. XIII. Mesmo assim nada que se compare com a grande basílica que hoje conhecemos, fruto de várias remodelações efectuadas durante séculos até ao Barroco, que é hoje a gramática estilística que dá corpo e forma ao templo, onde apenas subsiste o tímpano românico das obras de reconstrução após a Reconquista. A Colegiada de Santa Maria Maior foi decisiva na manutenção e conservação do templo, bem como da devoção, claro. É do tempo de Bonifácio VIII, que aprova a dita Colegiada na bula Mirabiliis Deus, de 1296, que surge pela primeira vez a invocação “do Pilar”.

O Pilar, lugar privilegiado de oração e de graça, como reza o seu Ofício Divino, mereceu a atenção e zelo dos fiéis desde sempre, sendo considerado como “uma antiga e piedosa crença”. O que peculiariza esta devoção afinal? Trata-se, com efeito, de uma aparição da Virgem em vida desta ainda, como se canta na liturgia de 2 de Janeiro, data da instituição da festa do Pilar: “Com nenhuma nação fez coisa semelhante”. Em segundo lugar, a coluna ou pilar em cima do qual apareceu a Virgem está na origem do primeiro templo mariano da Igreja. A vinculação das tradições do Pilar e do apóstolo São Tiago (tradição xacobeia) efectiva-se nesta devoção, sendo os eixos fundamentais da espiritualidade espanhola durante séculos.

Do ponto de vista espiritual, na Virgem do Pilar está simbolizada “a presença de Deus, uma presença activa que guia o povo eleito através dos perigos do caminho”, com a Virgem como “a coluna que orienta e sustenta dia e noite ao povo no deserto”. Daí que a sua invocação e devoção sejam enormes a partir da expansão espanhola no Novo Mundo, desde Colombo, com marinheiros e todo um povo a clamar pelo auxílio da Virgem do Pilar.

Esta tradição tem expressão cultual na missa e no Ofício, conforme decreto de Clemente XII, tendo sido elevada a categoria litúrgica de Festa, com Pio XII a conferir a todas as nações hispano-americanas a possibilidade de celebrar a mesma missa que se oficiava em Espanha. São João Paulo II reconheceu, em 1984, em Santo Domingo (República Dominicana), a Virgem do Pilar como a Padroeira da Hispanidade. Um santo aragonês, santo dos nossos tempos, dedicou à Virgem do Pilar a sua devoção mariana mais intensa, São Josemaría Escrivá, que clamava à Senhora, desde a sua juventude, Domina, ut sit! [“Senhora, seja como tu quiseres”].

Vítor Teixeira

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