Cronologia e rota de Sebastião
Antes de prosseguirmos com a fase final da prodigiosa aventura do nosso frade, façamos uma breve resenha da sua vida. Nascido na cidade do Porto, em finais do Século XVI, Sebastião Manrique abalou para a Índia no início do século seguinte onde terá professado, em Goa, no Convento da Ordem de Santo Agostinho, corria o ano de 1604. Em 1628 vamos encontrar Sebastião em Cochim onde seria nomeado para a missão de Bengala pelo vigário provincial da Índia, D. Luís Coutinho. Aquando a sua chegada a Bengala, já em 1629, Manrique diz-nos que deparou apenas com duas igrejas e respectivas residências: “uma, a metropolitana, na cidade de Dianga, outra na aldeia de Angaracale”.
Recorde-se que Dianga, relevante centro de comércio privado português, foi identificado, pela historiadora Maria Ana Marques Guedes, a mais reconhecida autoridade em assuntos históricos sobre esta região, como Dakhindanga ou Brahmandanga (“Danga” significa terra alta), localidade na margem esquerda do rio Karnaphuli, o “rio de Chatigão” das fontes portugueses, hoje na área urbana de Chatigão. Quanto a Angaracale, a uns cinco quilómetros de Dianga, pode ser identificado com uma das duas aldeias na margem do rio Sankha, embora da igreja não reste qualquer vestígio.
Em 1631, Manrique voltaria a passar pela região e, desta feita, assinala a existência de outras duas igrejas, uma delas na própria corte – “uma na estrada de Digripar, habitada por portugueses e indianos cristãos” e a outra na estrada de Forabo, habitado por japoneses “da guarda régia”. Curiosa esta presença de militares nipónicos, católicos, uma realidade também no Sião. Em ambos os templos, informa Manrique, celebrava-se a Eucaristia, “na primeira todos os dias e na segunda também aos domingos e dias de festas dizendo duas missas”. Manrique acrescenta ainda que o padre Frei Diogo da Conceição, nativo de Colão (Quilon, actual Kerala), terá edificado, em 1634, uma outra igreja numa pequena aldeia do distrito de Dianga, chamada Aulá, ou Aluía.
Uma das muitas impressões que o agostinho registou aborda a reencarnação, ou transmigração das almas; “assim, quando são queimados, eles transformam-se dentro dos seus féretros naqueles animais pelos quais em vida tiveram mais afeição, de modo que as suas almas passam para estes”. A tal respeito relata-nos um episódio por ele vivenciado na cidade de Ramu, ou Raja-myo, “a cidade do rei”, conhecida entre os arracaneses como Panwa: certo dia ao regressar a casa de um alto dignatário religioso, “considerado santo por toda a gente”, onde estava hospedado, foi impedido por um cão que lhe latia constantemente, e arreganhando os dentes. Manrique, sem hesitar, deu-lhe uma bastonada, desimpedindo assim o caminho. Mostrou-se chocado o arracanês ao presenciar tal gesto, e comentou: “Muito me admiro e fico escandalizado que sendo padre dos portugueses maltratais mal este animal no qual pode estar uma alma mais pura e mais justa do que a vossa”. Diz-nos o português que doravante o religioso arracanês nunca mais se mostrou afável com ele, como até então tinha acontecido, e de nada serviria os argumentos utilizados para justificar a sua atitude.
No trajecto do porto de Sirião a Ava, “uma viagem de meses por terra”, Manrique chama a atenção para a abundância de gente e de terrenos cultivados, destacando a presença de inúmeros “descendentes de portugueses e de indianos cristãos; e em algumas cidades, toda a gente, de ruas inteiras, sabendo que eu era religioso, ia ter comigo cheia de contentamento e alegria e com extraordinária reverência. E se bem que eu andasse acompanhado pelos embaixadores de Arracão, de todas as maneiras faziam com que ficasse alguns dias, durante os quais se confessavam com as suas famílias, se celebravam casamentos segundo a maneira católica, se baptizavam crianças assim como adultos que o pediam com grande instância; e os homens e as mulheres confessavam-se com grande abundância de lágrimas e edificação”.
Após as suas aventuras no norte do Coromandel, deixará Manrique Cochim em Setembro de 1636, com destino Goa, cidade que à semelhança de Macau sempre serviu de plataforma giratória e local de retemperamento de forças para os nossos missionários. Após o merecido descanso, o agostinho mostra vontade de regressar a Bengala, mas é-lhe negado tal anseio, optando então o destemido frade por participar no processo de evangelização do Japão em curso. A 27 de Abril de 1637 veleja para Malaca disposto a enfrentar um Estreito infestado por piratas holandeses. Permanece na praça-forte de Junho a Agosto de 1637 e, apesar dos riscos da época de monções, daí embarca para as Filipinas numa pequena embarcação tendo chegado ao “tão desejado porto de Cavite” a 5 de Setembro de 1637. Surpreende-o ver a cidade espanhola repleta de portugueses. Apercebe-se logo que nas actuais circunstâncias não poderá seguir para o Japão: as perseguições anticristãs tinham-se agravado após a revolta de Shimabara (1637-1638).
Catorze meses despende em Manila. A partida do arquipélago acontece a 13 de Outubro de 1638 e só após uma série de tempestades e desastres atinge a ilha de Sanchoão, seguindo dali para Macau onde integrará a missão destinada à Cochinchina, só que a ela não se adaptou, estando de regresso à Cidade do Nome de Deus algures em 1639. E como a situação não havia melhorado no Japão, decide retornar à Europa deixando o porto de Macau a 29 de Janeiro de 1640 rumo a Macassar de onde partirá, num navio dinamarquês, a 19 de Abril desse ano, para Banten, na ilha de Java. Porém, um erro de navegação leva-os à Baía de Bengala, e Manrique pede aos dinamarqueses que o desembarquem aí. Em boa hora o fez; o navio afunda pouco depois. Assim, e por mero acaso, Manrique acaba por chegar ao local onde sempre quisera regressar.
Joaquim Magalhães de Castro