CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 68

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 68

A coroação do governador de Urritaung

Escusado será dizer que toda aquela história da poção mágica e a hecatombe em torno dela gerada deixou Manrique profundamente consternado, e ele não poupa palavras de repreensão citando passagens da Vulgata e de São Tomás de Aquino, lamentando que “aquele rei” tivesse caído em tamanha esparrela.

Anunciada a coroação, aquietado o monarca, o agostinho achou que estava na altura de voltar a solicitar autorização de partida, até porque há muito a comunidade cristã de Dianga ansiava pela sua presença. Marcou nova audiência e dessa feita Thiri Thudhamma riu-se bastante, perguntando-lhe depois como podia ele requerer uma coisa dessas numa altura em que toda a gente movia mundos e fundos para ter o privilégio de poder assistir a tão singular evento? Afinal, não era todos os dias que se coroavam reis… Manrique sabia que não valia a pena insistir e outro remédio não teve senão resignar-se. Graças a esta recusa real pudemos nós inteirar-nos das solenidades que antecederam e acompanharam a entronização daquele que foi considerado o último grande rei da dinastia de Mrauk U. Sebastião Manrique e os portugueses residentes nessa cidade seriam os únicos europeus a presenciar tão marcante acto, tendo-nos felizmente deixado o frade relato pormenorizado. Razão para nos determos um pouco e dar a conhecer o que mais de relevante se passou.

Estamos a falar de um festival à escala nacional com a duração de três meses presenciado pela gleba e notáveis do reino mas também pelos inúmeros comerciantes, “do Sião, Birmânia, Índia e das Ilhas das Especiarias”, que aproveitaram para escoar a mercadoria armazenada nos porões dos seus navios, e que naquele porto estava isenta de impostos. Encheram-se as ruas e os bazares com alimentos, mezinhas, lenhos cheirosos, sedas, tapetes, porcelana, pedras preciosas, e raridades como o âmbar cinzento, o almíscar ou o mercúrio, além da laca, do cinabre, do ópio e do incenso. Mas antes da coroação propriamente dita havia que simbolicamente empossar como “reis” os doze governadores das doze províncias do Arracão que ao ajoelhar-se em frente a Thiri Thudhamma atestavam o seu poder. Manrique faz-nos um relato completo da investidura do primeiro desses “reis”, o governador de Urritaung, actual cidade de Ponnagyun, a norte de Akyab. Decorreu o acto num amplo salão coberto do chão ao tecto por magníficos panos de brocado e tapeçarias. Numa das paredes, nota Manrique, havia uma larga janela coberta “com um dossel de cetim branco salpicado de estrelas douradas e franjado com pérolas”, e na parte interna dessa janela um rendilhado dourado a fazer de cortina. Seis degraus abaixo, sentados em tapetes, os capitães portugueses partilhavam o lugar com príncipes, nobres, militares e altos funcionários, o que diz muito do privilegiado estatuto que gozavam. Ao toque de um tambor, “pendurado com correntes de prata”, todos fizeram a genuflexão obrigatória virados para a mencionada janela onde viram aparecer, depois de afastada a cortina, Thiri Thudhamma vestido com “uma túnica verde e um colar de pérolas”, segurando um leque “decorado com esmeraldas em cachos em forma de escamas de tartaruga”. Estava sentado o soberano num cadeirão de prata e tinha duas mulheres a abanar leques de pavão sobre a sua cabeça. Rodeavam-no vários eclesiásticos vestidos com damasco amarelo e tiaras com chifres, “provavelmente membros do Conselho de Astrologia e Ritos, certamente brâmanes recrutados na Índia que estavam encarregados de todo o cerimonial do estado”, como sugere Maurice Collis.

Deu-se então início a um programa musical composto por temas clássicos e danças a cargo de 24 donzelas trajando verde e branco, “com esguias coroas como as dançarinas siamesas”, algumas munidas de instrumentos musicais. Iam bailando em duas linhas que tanto se misturavam como se separavam, sempre fluindo graciosamente, “uma dança que lembra o yein birmanês ou o redjang balinês”, ainda na opinião de Collis, conhecedor dos assuntos birmaneses. Duraria uma hora a actuação, após a qual entraram doze meninas de tenra idade com coroas de ouro nas mãos que colocaram junto ao trono, seguidas de outras doze com ceptros que foram depositados ao lado das coroas. As genuflexões, prostrações e posturas que acompanhavam esses actos faziam-se – como nota Manrique – “ao som da música como se fossem parte da própria dança”. Só então se deu início à coroação do governador de Urritaung, o jovem Toon-htan, parente da família real. Avançou, sobre os ombros o manto de veludo vermelho típico da corte, precedido por graciosas donzelas com vestidos e toucas de damasco azul e branco. Assim que chegou à vista do rei fez o shi-ko, levantou-se, deu uns passos, repetiu a prostração e ficou deitado até que dois velhos brâmanes o conduziram até à base do trono momentaneamente desocupado para que nele fosse colocada uma estatueta do Buda à qual o príncipe Toon-htan jurou lealdade tocando o chão com a testa sete vezes. Thiri Thudhamma voltou a sentar-se na cadeira do poder e um brâmane, dando um passo em frente e com solenidade, saudou-o como “Senhor do Elefante Branco, herdeiro legítimo do trono da Birmânia, Senhor de Bengala, Senhor do Mar e da Terra e da Vida”, declarando que pela graça divina ele se tornaria também “Senhor do Mundo”. Chegaram então ao rei uma coroa e um ceptro, dentre as que estavam a seus pés, e ele entregou-os a Toon-htan que de Thiri Thudhamma se aproximara, subindo os degraus, sempre a rastejar… E com este pomposo gesto foi corrida a cortina dourada, ocultado o “Senhor da Vida” e a cerimónia encerrada.

Joaquim Magalhães de Castro

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