CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 65

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 65

Luso-descendentes no país Chin

Diz-nos Manrique que naquela selva remota foi recebido em casa de Inácio Gomes “com toda a cortesia portuguesa”, metido numa cama e servido com a melhor comida. Foram depois os seus macerados pés “banhados com uma loção de uvas” que lhe aliviaram as terríveis dores de que padecia. Esta passagem não deixa de ser curiosa. Uvas!? Será que os portugueses cultivavam videiras naquelas paragens? Tratar-se-ia verdadeiramente de uvas ou de um qualquer outro fruto similar? Se uvas eram, estamos perante uma das primeiras referências do género naquela vasta região reservada aos exilados, tampão entre o Arracão e a vizinha Birmânia.

Três dias após a chegada, já com energia para de novo caminhar, Manrique celebrou missa numa cabana algures “nas terras de Inácio Gomes”, improvisando “um altar em cima do qual estava uma cruz de madeira”. Ao todo assistiram à Eucaristia onze pessoas. A saber: Inácio Gomes, mulher e filhos (quatro rapazes e uma menina) e ainda uma viúva sua cunhada e os respectivos filhos. Manrique a todos baptizou, tendo procedido depois ao casamento oficial de Inácio com a companheira de etnia chin. Como era habitual em situações destas, o missionário pinta um cenário exagerado, garantindo-nos que todos “choravam copiosamente, sem dúvida pelos seus pecados antigos estarem agora a ser lavados, pelo que eu me senti envergonhado ao pensar como derramara tão poucas lágrimas pelos meus pecados tão pouco expiados”. Sebastião Manrique bem tentou converter a sogra de Gomes, velha senhora budista cujo fascínio por tão exóticos ritos foi interpretado pelo agostinho como genuíno interesse pelas coisas do Cristianismo. Afinal, não passava de simples curiosidade. Enquanto prelado, Manrique incutia-lhe respeito e durante a estada deste costumava levar-lhe ovos e frutas. Iludido pelos mui asiáticos e educados sorrisos e acenos, pensou Manrique estar perante uma futura neófita, instando desde logo a anciã “a abandonar os falsos princípios de sua seita”. Mas ela não precisava de alternativas espirituais. De tal modo estava enraizada a sua crença que, após uma particularmente intensa prédica, disse ao padre que noite anterior vira o Buda a sorrir e a prometer-lhe o paraíso. “Tenho setenta e dois anos de idade e estou perto do fim”, declarou, “não precisa de preocupar-se mais comigo”… No texto de Manrique é bem evidente a sua frustração: “Como vi que não havia meios humanos de quebrar a dureza daquela alma, abandonei-a e pensei em como devia passar o tempo onde pudesse obter melhores frutos”. Dito e feito. No dia seguinte, fez-se à estrada para visitar uma outra aldeia, a doze milhas dali, onde o esperavam mais cinco portugueses e respectivas famílias, e certamente muitos curiosos. Tinham por costume reunirem-se numa determinada casa “aos domingos e dias santificados para recitar ladainhas e outras orações”. Aí celebrou Manrique nova missa tendo no altar à sua frente “uma cruz de madeira por baixo de um dossel de algodão e uma lamparina de barro”. Cinco portugueses, dois mestiços e outras pessoas ao seu serviço, num total de trinta e seis indivíduos, “foram baptizados, consolados, confessados e absolvidos”. O facto de se terem juntado com diferentes mulheres, indo viver onde elas viviam, é uma possível explicação para a estranha dispersão destes desafortunados portugueses.

Finda a tarefa, Manrique regressou à aldeia de Inácio Gomes onde permaneceu mais três semanas, como o próprio afirma, “pregando, instruindo, admoestando, aconselhando e prevendo um futuro em que havia pouca esperança de voltarem a ver outro padre”.

Apesar das muitas súplicas para que ali ficasse, Manrique transmitiu ao monge (que entretanto se tinha retirado para o respectivo mosteiro) o seu desejo de partir, mas este avisou-o desde logo da impossibilidade de regressar pelo mesmo caminho. Era costume gravar um sinal nos braços de todos os que saiam da região. Tal formalidade obrigava a um controlo mais minucioso o que, no caso de Manrique, inevitável seria o desmascaramento. Havia, porém, um outro caminho, muito mais longo. Em vez dos nove dias seriam necessários catorze, mas com a vantagem de não haver qualquer posto de controlo policial. Para tal, teriam de seguir para leste, por ínvios trilhos de montanha, imensa selva infestada de tigres e outros animais selvagens, e atingir a costa, a sul da “foz do rio Caladão”. Foi o que fizeram. Chegados ao litoral compraram um barco a uns pescadores e subiram o rio até Mrauk U, tendo o percurso fluvial demorado três dias. Entraram os caminhantes na cidade pela calada da noite e por ruas secundárias e obscuros becos dirigiram-se até à residência de Manrique. Este de imediato se ajoelhou em frente ao altar caseiro para agradecer a Deus o bom sucesso daquela ousada campanha. O monge, concluída a sua missão, despediu-se de Manrique e foi ter com o irmão que havia deixado na cidade. Antes do amanhecer encetavam juntos o caminho de regresso às montanhas de Maum.

Joaquim Magalhães de Castro

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