O apelo dos degredados
Uma das passagens mais fascinantes da incrível viagem de Sebastião Manrique que ele tão bem descreve no “Itinerário” é o episódio que resultou do seu encontro com um clérigo budista em Mrauk U, antes da monção de 1634.
O monge, após uma abordagem discreta à porta da casa, entregou-lhe um texto escrito numa folha de palmeira que trazia cuidadosamente guardada num tubo de bambu. A missiva, redigida em Latim, tinha a assinatura de um português natural de Estremoz chamado Inácio Gomes e relatava uma história assombrosa. Em 1608, o mencionado personagem partira de Goa num navio, em missão comercial, com destino aos portos do Pegu. Porém, quando se encontrava ao largo de Arracão sobreveio uma enorme tempestade que num ápice afundou a embarcação. Dos 92 passageiros apenas dezassete lograram chegar à alcantilada costa onde depararam com soldados do monarca arracanês, que logo os acusaram de pirataria. Acreditavam piamente serem aqueles náufragos homens de Sebastião Gonçalves Tibau, rei e senhor da ilha de Sundiva, a norte desse reino budista, já no território hindu de Bengala, e cuja reputação de actos de pirataria corria todo o Oriente. Sem apelo nem agravo os sobreviventes seriam condenados ao exílio numa região montanhosa a norte da capital, domínio dos “chin”, povo de origem tibetano-mongol. E para que não mais pudessem dali escapar foram-lhes seccionados os tendões das pernas, deixando-os incapacitados para sempre. Resignados, sabendo que jamais voltariam à sua terra natal, para junto dos seus, os dezanove portugueses, prontamente aceites pelas tribos locais, gente de índole pacífica, acabariam por casar com mulheres “chin” e com elas fundaram família. Confrontavam-se, porém, com uma grande angústia: ansiavam pela presença de um padre que os confessasse, lhes rezasse missa e lhes ministrasse os sacramentos, um factor, naquela época, primordial.
Inácio Gomes, ao ouvir a notícia disseminada naquelas montanhas de que “um padre vestido com um hábito negro e longas mangas chegara a capital”, tratou de encontrar forma de entrar em contacto com ele. O apelo expresso naquelas palavras era pungente: “Peço-lhe, pelas chagas de Cristo nosso Redentor, para vir aqui salvar-me a alma, seja qual for a ordem a que pertença!”. Alegava que a vida, dele, da mulher e dos filhos, estava condenada ao fogo do Inferno, e, era tal o desespero que o final da missiva trazia um laivo de ameaça. “Se deixar de vir”, escrevia Gomes, “juro perante o trono de Deus que a nossa perdição lhe irá bater à porta”. Ora, o portador da missiva, o referido monge, era o irmão da mulher com quem Gomes vivia (na perspectiva de um cristão da época, essa era uma forma de pecado), o que diz muito da benevolência e espírito de tolerância do religioso arracanês. O estrangeiro não só lhe tinha “roubado” a irmã, convertendo-a ao Cristianismo no momento em que passara a viver com ela, como o incumbia de uma missão perigosíssima, pois os territórios destinados ao exílio eram de acesso interdito e para os infractores só havia um destino: a execução por empalação. A do infractor, familiares e instigadores. Assim, espetados em grandes varas de madeira, ou de ferro, os condenados morriam em atroz agonia. Em certos locais, besuntavam-nos de mel ou outra qualquer substância capaz de atrair moscas, formigas e demais insectos, para tornar a morte mais dolorosa ainda. Aliás, na própria mensagem esse perigo não era escamoteado. “Sei bem”, escrevia Gomes, “quão grandes são os riscos que há de correr para vir aqui, mas o monge é competente para o guiar e, se seguir os seus conselhos, poderá vir e regressar a salvo”.
Naturalmente as hesitações de Manrique foram muitas, não só devido ao perigo de vida eminente, mas porque iria prejudicar o seu trabalho: criar em Mrauk U – onde viviam já muitos portugueses, entre soldados da fortuna e comerciantes – uma missão agostinha. Manrique pediu ao monge algum tempo para reflectir e, como quem não quer a coisa, procurou informações mais pormenorizadas acerca daquela região junto de um indígena cristão. O homem elucidou-o sobre lugar de exílio para todos os europeus suspeitos de espionagem ou pirataria; local muito arborizado e cultivável, fronteira natural com o vizinho reino da Birmânia. O sítio só era acessível através de determinados vales, cuidadosamente guardados pela guarda real. A menos que o viajante estivesse munido de autorização régia, apenas aos monges budistas lhes era facultada a passagem. A ideia pareceu-lhe de tal modo impraticável que quando o monge o chamou de novo Manrique perguntou-lhe se estava a brincar. Um tanto ofendido, respondeu o monge: “Se é hábito entre os padres católicos fazer piadas quando os infelizes lhes pedem ajuda, entre nós, monges budistas, digo-lhe já que não”. A resposta deixou Manrique desconcertado. Sabia da seriedade da carta de Inácio Gomes, mas a verdade é que, e apesar de “toda uma vida dedicada à remição das almas, pronto a enfrentar o martírio” se necessário fosse, a dimensão da tarefa deixava-o aterrorizado. E confessou esse seu sentir ao monge que, surpreendido, ripostou: “O meu cunhado, Gomes, disse-me repetidas vezes que os padres católicos encaram as dificuldades sempre dispostos a suplantá-las… Como pode alguém que atravessou o oceano imenso ignorar o pedido de uma alma que quer ser salva”. Argumentaria Manrique com a sua condição de humano e, como tal, incapaz de fazer o impossível. “Não será impossível se pusermos em prática o meu plano”, disse o monge. Manrique mostrou-se disposto a ouvi-lo.
Joaquim Magalhães de Castro