CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 45

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 45

A flor-de-lis como símbolo de poder

Se quero prosseguir com a visita devo regressar ao local de onde vim ou então completar o entorno até à entrada oposta, reparando, desta feita, nos inúmeros respiradouros, em jeito de seteiras, da parede exterior, pois além da refrigeração estes templos tinham uma função defensiva, daí a sua aparência de “bunker”. Do átrio acedo ao primeiro túnel através de uma antecâmara que me revela centenas de imagens de Buda, visão algo monótona, entediante até, há que dizê-lo – era aqui que se posicionavam os guarda-costas enquanto o rei orava no santuário –, e que culmina noutra antecâmara que, curiosamente, nos permite aceder, sem ter de regressar ao ponto de partida, ao corredor do meio, à mais interessante componente do Shitthaung, o recheio do bolo, por assim dizer. Trata-se de um espaçoso corredor, ou melhor dizendo, quatro espaçosos corredores preenchidos com painéis pictóricos ininterruptos, em diversos estratos, contando-nos estórias e mitos que cabe aos arqueólogos e historiadores interpretar, mas a respeito dos quais pode e deve o visitante especular… É o que irei tentar fazer. Antes disso, um reparo: túneis e portadas ogivais, bem ao estilo gótico, em tudo similares às das nossas fortalezas, é uma prova mais do engenho e labor arquitectónico português.

Saliento, desde já, nesta continuidade de altos-relevos, a elevada percentagem de cores originais ainda em bom estado de preservação, algo incomum neste tipo de peças de arte. Temos por hábito associar a estatuária antiga ao cinzento, ao pardo, à cor da pedra ou do saibro, esquecendo que estas catacumbas, no seu tempo, resplandeciam com cores, como resplandecem ainda o exterior dos actuais templos hindus de cultura tâmil, no Sul da Índia. Em vez dos Budas vejo aqui bodhisattvas, devas e devis, nats, todos eles personagens das múltiplas jatakas (lendárias biografias de Buda nas suas diferentes formas, e estão aqui explanadas 550) e na companhia de plantas, aves, cervos, búfalos e outros animais de difícil identificação, embora cuidadosamente catalogados com aqueles pequenos autocolantes que indicam os preços dos produtos nas prateleiras dos supermercados, coisa bastante prática para os arqueólogos, tenho a certeza, mas de péssimo aspecto para o visitante. Há também representações profanas do dia-a-dia com clara predominância para as cenas de caça e de luta livre, embora também abundem músicos e dançarinas. Vejo monges viandantes, sadhus e mulheres a pentearem os longos cabelos e, mesmo ao lado, uma embarcação e alguém que dela parece cair ao mar… No plano amoroso, um casal tendo a seus pés uma espécie de cupido de arco em riste pronto a disparar sobre eles a fatal frecha, e uma outra cena visivelmente mais erótica ao estilo Khajuraho, um homem com a mão no seio da companheira pronto a beijá-la, tem o seu correspondente no plano animal num par de lagartos (crocodilos?) a copular, a mais ousada de todas as representações. Chama-me particularmente a atenção a figura de um homem empunhando uma besta de aspecto sofisticado. Será um mercenário português?

É claro que é minha principal missão descobrir a tal efigie de Min Bin, mencionada pelo professor Aung, o que não é nada difícil. Encontro-a numa das esquinas, sentado num elefante, com a rainha Phaw Saw ao lado direito e a princesa muçulmana Pay Thi Dar ao lado esquerdo, ambas com damas de companhia. A roupa que Min Bin veste aparenta ser de campanha, e a sua mão esquerda exibe aquilo que com um pouco de imaginação parece um astrolábio estilizado, enquanto a mão direita, encostada ao peito, segura uma flor-de-lis. No entender do professor de Sittwe, é este um sinal de apropriação pelo monarca arracanês de uma insígnia de poder português. O dito emblema surge também nas mãos das duas consortes e pelo menos numa divindade feminina, que a exibe ao alto com a mão direita, segurando na esquerda o tal objecto circular estilizado, certamente a versão local de um símbolo hindu ou budista, se bem que não esteja a ver qual… É bom que se recorde ser a flor-de-lis um dos ícones do período dos Descobrimentos, e bem patente está nos dois escudos portugueses – junto aos dozes castelos e às cinco quinas – gravados no mastro ligado a três estruturas triangulares, “as velas enfunadas pelo vento”, que empurram “essa caravela estilizada a fazer-se ao mar” levando à proa o Infante D. Henrique e 32 dos protagonistas da nossa epopeia ultramarina: navegadores, cartógrafos, guerreiros, colonizadores, evangelizadores, cronistas e artistas. A primeira rosa-dos-ventos a usar uma flor-de-lis para destacar o Norte, prática que perdura até aos dias de hoje, é a rosa-dos-ventos da carta náutica de Pedro Reinel, de 1504. A opção dos portugueses em utilizarem agulhas de marear com os ferros fixos na rosa deve-se certamente a um somatório de várias razões, sendo certo que a generalização da utilização do Sol na navegação astronómica teve papel preponderante nessa opção. Na sua obra “Libro de las Longitudes”, o cartógrafo espanhol Alonso de Santa Cruz, que visitou Portugal em 1545, chama a atenção para o facto de os pilotos espanhóis utilizarem agulhas com ferros ferrados “fora da flor-de-lis”, ao contrário dos pilotos portugueses que utilizavam agulhas com os ferros ferrados “na flor-de-lis”.

Mas regressemos ao interior de Shitthaung. Numa outra esquina, volto a deparar com Min Bin, mas na sua versão divina. Mantém-se em pé sobre um elefante com corpo humano (adaptação local do deus hindu Ganesh?) e continua acompanhado pelas suas mulheres. Veste a túnica celestial de Brahma, deus criador com múltiplos braços, e exibe o conhecido búzio, esse sim identificável símbolo budista. De regresso ao átrio encontro-o repleto com os patronos e zeladores daquele espaço religioso. Estão em reunião e comportam-se como se estivessem em sua casa, alheios aos visitantes.

Joaquim Magalhães de Castro

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