CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 35

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 35

A Igreja de Manrique

Ao que consta, a milagrosa raiz que adiou a partida desta para melhor do frade Manrique – designada pelo próprio de “lucerragem” – não era droga disponível nas bancas dos bazares. Apenas medrava nas Ilhas das Especiarias, nas Celebes e em Java, tendo por isso de ser requisitada junto das potestades dessas nações ou de algum influente mercador que lá tivesse acesso. Diluída na água depois de moída, a possante droga mostrava-se eficiente não só no tratamento da febre mas também nos casos de mordeduras de serpentes e lacraus ou feridas provocadas por flechas envenenadas. A seu respeito escreve Sebastião Manrique: “Essa raiz produz resultados tão milagrosos, que eu nunca teria acreditado, nem ousado mencioná-los, se não os tivesse testemunhado”. Refere depois um certo Dom Filipe Lobo “capitão de Macau, na China”, que em Macassar, nas Celebes, recebeu do rei local, em jeito de presente, “alguma lucerragem”.

Para demonstrar os poderes extraordinários da planta, Thiri Thudhamma ordenou à sua presença um criminoso condenado à morte e pediu a um guarda que o picasse com um dardo envenenado. O infeliz começou a espumar da boca e minutos depois vomitava tudo o que tinha nas entranhas. Foi-lhe então administrado um preparado de “lucerragem” e em pouco tempo recuperou totalmente. Para provar que a experiência não era uma encenação, o criminoso foi picado de novo, e dessa vez deixaram-no morrer.

Sentindo melhoras imediatas, Manrique ficou convencido da eficiência dessa notável planta que, ao contrário do que afirma Maurice Collis, é mencionada por outros viajantes dessa e anteriores épocas. Fala-nos dela, por exemplo, o dominicano Miguel Rangel, refundador da missão católica em Solor. Em 1635, numa relação enviada aos seus superiores em Macau, faz-nos uma excelente descrição dessa ilha onde havia de “tudo o necessário” ao bem-estar do ser humano e a “uma proveitosa actividade comercial”. Bom e barato arroz, mas também vinho, “o melhor de toda a Índia”, embora não nos diga qual o tipo de vinho, e carne – veados, porcos, búfalos e cabras, “que dão à luz três vezes ao ano” – além de variedade de peixe. A fruta, então, era de excelência: aos nativos mangos, jacas e ananases juntavam-se os alienígenas melões, romãs, figos, limões, ameixas, amêndoas, laranjas “tão boas como as da China” e ainda, pasme-se, as uvas moscatel! Pergunto-me: o que terá motivado a interrupção do cultivo dessas espécies introduzidas há cinco séculos pelos portugueses na Insulíndia e territórios vizinhos? Hoje, apenas os frutos tropicais aí crescem e se por acaso deparamos com maçãs ou uvas, serão invariavelmente importações da China ou então de produção nacional algures no montanhoso interior javanês. Rangel não esquece, é claro, as plantas medicinais, incluindo no lote o tamarindo e a pedra de bezoar, mas também as ilustres desconhecidas “lucerragem”, “belile” e “bidarupes”. A Indonésia constituiu, aliás, um alfobre no que respeita aos simples, indicados para todas as maleitas. Em jeito de curiosidade, o termo “Vital” tem o significado que nós lhe damos acrescido de uma outra valência fonética: designa também o órgão sexual masculino. Numa passagem da sua crónica o dominicano refere uma povoação da vizinha ilha das Flores, denominada “Lussaragem”.

Quando Manrique recuperou por completo davam-se os últimos retoques nas obras da igreja. Urgia pois marcar dia para a sua consagração à Virgem Maria. A terceira semana de Outubro, uma vez terminada a monção, pareceu-lhe ser a data mais apropriada. Inteiramente coberta com tapetes indianos e persas, a nave do templo fora decorada com folhas de bambu e de palmeira, e também com flores de seda, prenda especial de um dos cristãos japoneses, que os havia ali, como em Pegu ou em Aiutaia. O altar estava coberto com flores dessas enfiadas em vasos de ouro cravejados de joias emprestadas pelos responsáveis do tesouro real, que disponibilizariam ainda para o evento 24 jarros de ouro, quatro dos quais “tão grandes que um homem dificilmente poderia levantá-los”. Também os havia de prata, alguns com mera função ornamental, outros como queimadores de resina aromática e paus de incenso chineses, pois o sincretismo religioso era uma realidade incontornável nestas comunidades neófitas.

No centro do altar estava a caixa de betel de ouro oferecida pelo rei, e em cima dela uma gravura da Virgem ladeada de incenso de qualidade superior. As flores, o fumo do incenso, a profusão de cores, o ar do mistério, tornaram-se o assunto de conversa na Corte, sempre sedenta de novidades. Muitos dos grandes senhores saíram para dar uma olhada e questionarem Manrique acerca da Virgem Maria, impedindo assim que este se concentrasse nas confissões e na celebração da Eucaristia. Chegado o dia da consagração, ocorreu ao local tal multidão de cortesãos e seus funcionários que os fiéis católicos se viram impedidos de entrar. Foi requisitada a autoridade para afastar os arracaneses para que se pudesse fechar a porta e celebrar a missa. No sermão, Manrique exortou os fiéis a adorarem a Virgem, cujo apoio necessitavam “agora mais do que nunca”, vivendo como viviam entre um povo “preso às garras do demónio”. As festividades da cerimónia de consagração à igreja de Daingri-pet seriam encerradas ao som e luz de fogo-de-artifício.

N.d.R.:Por lapso, na última edição d’O CLARIM(27 de Novembro), o título desta coluna está errado. Ao invés de “A chegada a Bandel”, deveria ter sido publicado o título “A vista sobre Daingri-pet”.

Joaquim Magalhães de Castro

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