O Pietismo – III
Parecia que a “ortodoxia” luterana se mitigara, relaxara. Como em outras confissões cristãs, tal relaxamento era sinónimo de inquietação da parte de alguns, que não se conformavam com aquilo que entendiam como um afastamento das origens, do carisma de Lutero e dos que primeiro o seguiram. Spener e os que o seguiram, no Pietismo, procuravam corrigir um problema crescente que identificaram como a “ortodoxia morta” dentro da Igreja Luterana. Aos seus olhos, a vida de fé dos membros da igreja estava progressivamente a ficar reduzida a uma mera adesão à doutrina, a uma teologia formal e a uma ordem da igreja, institucional e “pesada”.
Spener, animado pelo escopo de reavivamento da piedade, devoção e de uma religiosidade genuína, introduziu, no movimento que espoletou, algumas mudanças de forma a reanimar a fé e dar-lhe o verdadeiro sentido luterano. São prova disso os pequenos grupos de crentes piedosos que se reuniam regularmente para oração, estudo da Bíblia e edificação mútua, os chamados “Collegium Pietatis”, ou “reuniões piedosas”, que visavam enfatizar a santidade como forma de vida. Para concretizar essa santificação, os membros colegiados concentravam-se na libertação do pecado através, por exemplo, da recusa em participar em actividades que consideravam mundanas e contraproducentes face aos objectivos.
Vida cristã rigorosa
O Pietismo é um movimento dentro do Luteranismo que combina uma ênfase na doutrina bíblica com a piedade individual própria da Reforma e numa vida cristã vigorosa, em rigor. Embora o movimento inicialmente fosse activo exclusivamente dentro do Luteranismo, não deixou de ter um grande impacto no Protestantismo em geral, não apenas na Alemanha mas um pouco por todo o mundo, particularmente na América do Norte e na Europa. A transformação pessoal por meio do renascimento e renovação espiritual, devoção individual e piedade eram desideratos que atraíam cada vez mais descontentes com o rumo da Reforma Protestante. Defendiam a vivência da humildade e uma educação estrita, punitiva e disciplinar. Embora Spener não defendesse directamente as práticas “quietistas”, legalistas e semi-separatistas do Pietismo, estas não deixavam de estar mais ou menos impregnadas nas posições que assumiu ou nas práticas que encorajou.
Da Alemanha irradiou para a Suíça e para o resto da Europa de língua alemã, depois para a Escandinávia e espaços luteranos no Báltico. No Norte da Europa, de facto, exerceu grande influência, deixando uma marca permanente no Luteranismo dominante na região, com figuras como Hans Nielsen Hauge (1771-1824) na Noruega, Peter Spaak (1696-1769) e Carl Olof Rosenius (1816-1868) na Suécia, Katarina Asplund (1690-1758) na Finlândia e Barbara von Krüdener (1764-1824) na Letónia (onde existia uma importante comunidade luterana germanófona) e também na Prússia Oriental (entre a actual Polónia e a Lituânia; uma das figuras mais destacadas foi o filósofo Immanuel Kant, 1724-1804), além de outras comunidades luteranas de outras regiões da Europa. Depois, enxameou para a América do Norte, principalmente através de imigrantes alemães e escandinavos. No Novo Mundo, influenciaria protestantes de outras origens étnicas, contribuindo para a fundação do “evangelicalismo” no Século XVIII, um movimento dentro do Protestantismo que hoje já tem cerca de trezentos milhões de seguidores em todo o mundo. São, de facto, profundas as influências do Pietismo no Cristianismo moderno. Embora nunca se tenha tornado uma denominação ou igreja organizada, a sua influência no Protestantismo é profunda e duradoura, afectando quase todo a Reforma e deixando a sua marca em grande parte do evangelicalismo moderno.
Foi o primeiro grande movimento dentro do Luteranismo, mas também o que mais se expandiu. Em meados do Século XIX, Lars Levi Laestadius lideraria um renascimento pietista na Escandinávia que sustentou o que veio a ser conhecido como a “teologia luterana de Laestadian”, que hoje dá pelo nome institucional de Igreja Luterana Laestadiana, bem como por várias congregações dentro de outras igrejas luteranas tradicionais, como a Igreja Evangélica Luterana da Finlândia. O Sínodo Eielsen e a Associação de Congregações Luteranas Livres são denominações institucionais luteranas de matriz pietista que surgiram no movimento luterano (pietista) na Noruega, que foi liderado pelo já referido Hans Nielsen Hauge. Em 1900, foi fundada a Igreja dos Irmãos Luteranos (Church of Kutheran Brethren) nos Estados Unidos, que segue a teologia luterana pietista, enfatizando a experiência de conversão pessoal.
Mas enquanto os luteranos pietistas permaneceram dentro da tradição luterana, os adeptos de um movimento relacionado conhecido como Pietismo Radical, que acreditavam e defendiam a separação das igrejas luteranas estabelecidas, ganharam expressão e criaram facções separadas. Nesta análise do impacto do Pietismo, recorde-se que alguns dos seus princípios teológicos influenciariam também outras tradições do Protestantismo, inspirando o sacerdote anglicano John Wesley (1703-1791) a iniciar o movimento metodista e Alexander Mack (1679-1735) a iniciar o movimento conhecido como “Irmãos Anabatistas” (“Schwarzenau Brethren”, ou Baptistas Alemães).
Acima de tudo, a santidade sobre a teologia formal, defendem os pietistas, no compromisso completo com Jesus Cristo, bases da renovação espiritual e moral do indivíduo. Pretende-se acima de tudo uma nova vida, a partir da leitura e observância integral da Bíblia e dos seus exemplos. No Pietismo, a santidade genuína é mais importante do que seguir a teologia formal e a ordem da igreja, é mais importante a elevação espiritual a partir de cada um do que a exterioridade eclesial. A Bíblia é o guia constante e infalível para viver a fé de alguém. Os crentes são encorajados a envolverem-se em pequenos grupos e a captar devoções pessoais como um meio de crescimento e uma forma de combater o intelectualismo impessoal. Mas também existe a vertente da caridade: além de desenvolverem uma experiência pessoal de fé, os pietistas enfatizam a preocupação em ajudar os necessitados e em demonstrar o amor de Cristo às pessoas em todo o mundo.
As inspirações pietistas surgem assim em diversas igrejas protestantes com acção missionária, nos seus programas de extensão social e comunitária, em tudo onde se dá valor aos pequenos grupos e ao estudo da Bíblia. O Pietismo, com efeito, moldou a maneira como os cristãos modernos adoram, dão ofertas e conduzem sua vida devocional. E vejam-se os famosos hinos de John Wesley, de que falaremos, com a sua ênfase na experiência cristã, tão marcados que são pelo Pietismo. Porque a santidade pessoal importa, mas também a santificação colectiva.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa