CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 34

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 34

A vista sobre Daingri-pet

A caminho de um troço de muralha ainda em bom estado de conservação não muito longe do hotel, o Myn Thar Khyu Wall – por sinal retratado no debuxo de Wouter Schouten –, deparo com uma intrigante torre vermelha, afinal, um crematório, e com resquícios de um dos fossos, o Panche Myaung, que para além da sua função defensiva servia de canal em tempo de paz como se pode ver na supracitada ilustração.

A estrada principal acompanha estes pontos de referência históricos, quase que lhe define os contornos, e junto a um reservatório de água estratégica placa de madeira indica o local de acesso a uma colina adjacente. No topo, vários bustos de budas descabeçados ou simples cabeças sem torso do Iluminado devidamente acondicionados no que resta de esboroadas estupas e com direito a oferta para minimizar o sacrilégio de tempos outros, menos tolerantes, certamente. É um dos locais predilectos para assistir ao pôr-do-sol, dizem. A mim interessa-me a vista privilegiada que daqui tenho sobre a vasta área antes ocupada pelo bairro português, hoje massa informe de bananais, residual presença humana, insignificante amontoado de casas. Ao canto esquerdo da pintura que temos vindo a falar é representada uma colina com pagode no topo e escadaria de acesso com três figuras femininas em movimento. Porém, aqui no alto comprovo definitivamente que todo o terreno circundante de Daingri-pet é plano como uma panqueca. Terá tomado o desenhista a liberdade de trazer para dentro do perímetro residencial dos europeus uma das muitas colinas cónicas das redondezas para dessa forma melhorar a composição? É o que parece… Temos como possibilidades inspiradores sérios candidatos. Mesmo em baixo, o templo Sa Kya Shwe Gu, construído em 1571, é o que o mais se aproxima da ilustração pois situa-se numa pequena colina, o mesmo não se podendo dizer do Lawka Man Aung (1658) ou o Phara Paw (1603), se bem que este último seja o mais próximo em termos geográficos.

Incansáveis e talentosos desenhadores, os holandeses transpuseram para a tela e o papel aquilo que os portugueses descreveram depois de vivenciaram ou que vivenciaram mas nunca descreveram. Sim, porque a informação que ficou (pelo menos a que se conhece) está muito longe de corresponder à grandeza dos feitos; e, desgraçadamente, desenhar nunca foi o nosso forte. Os holandeses, pelo contrário, não só o faziam em profusão como tinham por hábito incluir nessas pormenorizadas obras de arte legendas assinaladas com letras do alfabeto, ou então números. No caso do retrato de Mrauk U são sete os locais anotados, de A a G, entre os quais o dito pagode. Na altura, o bairro estava ligado à cidade por uma ponte, ainda hoje existente, uma das muitas. A muralha, em toda a sua extensão e na cor original, vermelhão de tijolo, vem assinalada, assim como o bairro da gente comum às portas da mesma e definida por Schouten como “uma vasta esplanada em frente à fortaleza”, ou seja, um espaço aberto no exterior do portão leste.

Muitos anos depois, em 1629, desembarcava em Daingri-pet o frade agostinho Sebastião Manrique com o estatuto de diplomata, pois fora recebido antes pelo monarca arracanês, em retiro no reverenciado templo de Mahamuni. A tão distinta personagem, pois claro, seria providenciada casa própria e suficiente provimento de arroz, sal e manteiga, mas também vacas, porcos e aves, uma vez que a sua estada certamente se iria prolongar. Manrique não perdeu tempo. Autorizado por Thiri Thudhamma a erigir a igreja há muito desejada pela comunidade católica, tratou de escolher o local mais apropriado e definiu desde logo uma meta para a conclusão dos trabalhos: em dois meses o eremitério estaria completo. Até porque, como escrevia a propósito, “a madeira da mais excelente qualidade era facilmente obtida”; algo perfeitamente normal numa região onde a construção se fazia, ou com lenho ou com bambu.

À medida que o trabalho progredia, Manrique foi ouvindo inúmeros crentes em confissão e baptizou os filhos e as esposas dos portugueses ali estabelecidos e há décadas sem a presença de um padre. Estávamos em pleno mês de Agosto, monção na força toda, e as chuvas torrenciais deixavam os terrenos alagados e com água estagnada propícia a todas as moléstias. Manrique, debilitado pela longa jornada e as horas a fio ouvindo as longas e frenéticas confissões de homens privados de suporte espiritual durante tantos anos, acabaria por ser presa fácil para o mosquito portador do paludismo. Bem o tentou ignorar, no princípio, fintando a febre com trabalho e, como não havia médico português em Daingri-pet e Manrique não confiava na medicina local, ele próprio se sangrou e se automedicou com as mezinhas que sempre trazia no alforge. Debalde. Dia após dia deteriorou-se a saúde e quando se falava já na sua morte a notícia chegou aos ouvidos do rei, entretanto regressado de Mahamuni. Thiri Thudhamma apressou-se a ordenar ao seu médico pessoal que comparecesse no arrabalde dos estrangeiros e curasse o clérigo, o que viria a acontecer, em Outubro desse ano, graças a um remédio natural cujo conhecimento com os séculos se esvaneceu e está agora irremediavelmente perdido.

Joaquim Magalhães de Castro

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