CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 30

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 30

Pardaliek, a terra dos “Padree”

A ideia da flor de lis enquanto símbolo de poder dá-me vontade de partir de imediato para Mrauk U para poder ver ao vivo e a cores tudo aquilo que o professor me acaba de contar. Mas ele ainda não concluiu. Mascando betel continuamente, agora mais aquietado, pois deu-me alguma da matéria que tanto ansiava, retira da estante um livro de numismática de capa azul que está enfiado entre dois calhamaços do Oxford Dictionary e, olhando por cima das lentes, profere com ar de entendido: «Estão aqui retratadas moedas de ouro muito antigas, algumas do Século IV. E eu consigo lê-las a todas!». Aliás, essa é a especialidade deste professor de Biologia feito historiador, daí o contacto que com ele estabeleceram vários investigadores versados na história da região. Foi o caso da mencionada Pamela Gutman cuja tese aparece, por mero acaso, ao lado do livro de numismática. «Está a ver», diz o professor apontando para a imagem de uma das moedas, «de um lado temos o idioma arracanês e no verso três outras línguas. Quer maior prova da extensão geográfica do nosso comércio? Éramos muito ricos e fomos os primeiros a usar moedas de ouro e prata».

Folheadas uma série de páginas, surge uma moeda cunhada em Chatigão. «No verso vem escrito “Senhor do Elefante Branco” e no reverso “Salim Shah”», apressa-se a dizer Aung. Esta última informação indica que estamos perante um cunho da iniciativa de Min Razagyi pois Salim Shah é título muçulmano que a si próprio atribuiu após a conquista definitiva da região sul de Bengala, tradição que remonta à origem da dinastia de Mrauk U.

Contribuiu para o sucesso militar do monarca o precioso contributo dos portugueses há muito estabelecidos na região e profundos conhecedores dos seus caprichos geográficos, e das tricas e trocas e baldrocas da política. Demonstra-o à exaustão o relatório da missão diplomática portuguesa de 1521 ao sultão de Bengala Nasir-ud-din Nusrat Shah, na época, sedeado na cidade de Gaur, protagonizada por António de Brito e Diogo Pereira. Ao lermos a designada “Lembrança” depressa apercebemos que os portugueses – cinco anos apenas após a chegada a Bengala – haviam-se tornado já importantes peças no xadrez político local. Tiravam proveito do débil poder do sultanato, do qual dependia a cidade portuária de Chatigão, de tal forma autónoma que as autoridades em Gaur tinham imensa dificuldade em gerir. Procederiam de igual modo os mercenários turcos; ora rivalizavam com os portugueses ora se aliavam a eles.

Graças ao anónimo autor da “Lembrança” ficamos a conhecer figurões da cepa de Rafael Perestrelo e Cristovão Jusarte, autênticos senhores da guerra à frente de contingentes de mercenários seus conterrâneos, pelejando lado a lado com congéneres otomanos, neste caso liderados por um certo Ali Agha. Surgiriam ambos à vista dos emissários portugueses, “armados com bons arcabuzes, lanças, escudos, arcos e flechas”, a maioria “vestida ao estilo do país”, e em tal sintonia “que se tornava impossível distinguir os portugueses dos turcos”. Uns e outros, nos próximos dois séculos, emergiriam como um factor decisivo na batalha pelo controlo e posse de Chatigão.

Gente da estirpe de Jusarte e Perestrelo são descritos pelos cronistas portugueses contemporâneos como “arrenegados”, “alevantados” ou “chatins”, diferenciando-os assim dos comerciantes e soldados do Reino, conhecidos como “casados”. Eram homens que se movimentavam na fronteira da sociedade luso-asiática, vivendo em ambos os mundos e deles usufruindo muitas benesses e algum poder. Filipe de Brito e Nicote, Manoel de Mattos, Domingos Carvalho ou Sebastião Gonçalves Tibau, são exemplos de alguns dos chatins bem-sucedidos. Usariam a sua carreira ao serviço dos reis arracaneses para melhorar o status na sociedade luso-asiática. «Os portugueses foram os nossos primeiros instrutores no uso de armas de fogo, não os holandeses», lembra o professor Aung. «Todos os povos desta região tinham portugueses ao seu serviço. Não admira pois que corra muito do vosso sangue em toda esta região». Cumprido este interregno, o regresso à numismática, afinal, a verdadeira paixão de Aung.

Se as moedas se acumulavam nos baús dos ricos, aos pobres estavam reservas para as suas transacções «os pequenos búzios das ilhas Maldivas». A propósito, Aung menciona uma localidade onde se armazenavam grandes quantidades dessas conchas, habitada por portugueses. Daí o bairro “Pardeleeshee” ou “Pardaliek”, termo que deriva do nome “padree”, ou seja, “sítio dos padres”. «Os clérigos acompanhavam os marinheiros prontos a fazer os serviços fúnebres quando algum deles morria». Situa-se na desembocadura de um rio, uma dezena de quilómetros a norte de Sittwe. Procuro no mapa e não encontro a palavra, mas Ponnagyun, na margem do Kaladan e na foz de um dos efluentes, encaixa na descrição. Aung, porém, assegura que não é esse o local. «Os portugueses entravam pela foz do rio Mayu e dali seguiam para Mrauk U. Não usavam o Kaladan pois tinha à sua entrada muitas rochas, o que perigava a navegação». Da antiga Pardaliek nada resta, apenas vivem aí ainda alguns pescadores sazonais.

Joaquim Magalhães de Castro

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